Qual praia mediterrânea restará para os banhistas europeus?

Quem acorrer às suas férias anuais nas areias das praias gregas, turcas, francesas ou italianas poderá se deparar com embarcações de todos os tipos e tamanhos trazendo famílias inteiras de refugiados, quando não tendo que se incorporar ao resgate de corpos humanos, sim humanos, que vem bater na praia, trazidos pelas ondas do mar. Não seria uma cena muito agradável para as doces e esperadas férias dos europeus.

Por Ana Prestes* e Moara Crivelente**

Turistas na ilha grega de Kos observam a chegada de imigrantes em bote, vindos da
- Foto: G1

Esta foi a abordagem esquizofrênica e inconfessável que se depreendeu da postura dos líderes europeus até a última semana. No entanto, as fortes imagens, especialmente de crianças encontradas afogadas nas praias turcas, parecem ter provocado uma comoção mundial da qual nem o mais insensato dos líderes pode escapar. Ocorre que, não bastasse a crise econômica que se abate no continente desde 2007, os europeus e, em especial, seus chefes de Estado, foram convidados a terminar de desembarcar do paraíso. Não há fresta de fronteira europeia hoje por onde não tentem entrar milhares de refugiados todas as horas do dia. Não adianta tratar como enxame de insetos, levantar muros ou embarcar em trens que levam para o meio do nada. Eles estão lá. São reais. São muitos. São humanos.

Foi preciso que uma campanha pedisse a órgãos midiáticos tradicionais, como a britânica BBC, que abrissem mão da política do denominar. Suas manchetes recheadas do termo “crise migratória” são falaciosas, simplistas e insensíveis às causas que levam famílias inteiras a fugir de suas casas, lançarem-se à sorte e ao risco, para tentar a vida em algum país europeu onde serão encarados pelas ruas como intrusos. A campanha pede que se reconheça: são refugiados buscando escapatória de “crises” frequentemente abastecidas por esses mesmos “paraísos” para onde se dirigem.

Talvez tenha sido por esforços como esse que o menino sírio cujo pequeno corpo foi avistado pelo mundo inteiro, afogado, em uma praia turca, recebesse um nome e um histórico: ele era Aylan Kurdi, tinha três anos de idade e foi carregado pela família, até que sua mãe, Rehan, e seu irmão, Ghalib, de cinco anos, também se afogassem. A história é contada pelo pai, Abdullah Kurdi, que restou solitário na fatídica jornada de volta para casa, para enterrar a esperança. A família deixara Damasco e, antes disso, Kobani, uma resistente cidade curda brutalmente atacada pelo autodenominado “Estado Islâmico”. Mas a morte do pequeno Aylan talvez tenha finalmente tocado as sensibilidades de espectadores que se acostumaram com números e análises superficiais das situações em que se encontram já milhões de seres humanos.

Os incontáveis Aylans

As histórias de demasiados Aylans são frequentemente resumidas a estatísticas. Apesar de insuficientes, elas dão uma dimensão da escala global da tragédia que enfrentamos. As imagens de corpos que chegam às praias ou de moribundos resgatados no mar após travessias de risco, principalmente vindos da África e do Oriente Médio, enquadram-se num contexto alargado e complexo que diz muito sobre a atual conjuntura geopolítica mundial. Conflitos perpetuados – como no Afeganistão, no Iraque e agora na Síria, no Mali, na República Democrática do Congo, entre tantos outros – somam-se às crises sistêmicas do capitalismo para impor a determinadas populações riscos tamanhos que a solução se lhes apresenta como o deslocamento ou o refúgio.

Mais de 2.300 pessoas já morreram em 2015 tentando cruzar o Mediterrâneo, principalmente da Eritréia, do Mali, da Síria e do Afeganistão. No ano passado, foram mais de 3.200 mortes na mesma travessia e 307 pessoas também perderam suas vidas tentando cruzar a fronteira do México com os Estados Unidos. Desde 2000, mais de 22 mil migrantes morreram tentando alcançar a Europa. Os dados são do mais recente relatório da Organização Internacional para a Migração, “Jornadas Fatais” (Fatal Journeys).

Ao avaliar a autal “guerra contra a imigração” praticada na União Europeia, inclusive contra cidadãos desta comunidade, o professor espanhol de Ciências Políticas Sami Naïr conclui, num artigo recente para o diário El País: “Acreditou-se que se podia conter, para sempre, um problema estrutural de natureza demográfica e geoconômica unicamente com medidas policiais; isso é o que hoje explode no rosto da União! A ofensiva conjunta dos solicitantes de asilo, trabalhadores comunitários provenientes de países pobres da União e imigrantes econômicos não comunitários quebra finalmente a muralha do império europeu”. O professor critica o esgotamento de uma política migratória elaborada pelo bloco a partir de 1985, desde que assinados os Acordos de Schengen, autores da construção de “uma autêntica barreira de ferro contra os de fora”, responsáveis por uma redução drástica na concessão do estatuto de refugiado e, consequentemente, do asilo.

Dá-se, assim, uma gestão quase militar das fronteiras e cria-se um buraco negro relativo aos “terceiros países”, em que um solicitante de asilo não pode pedir este estatuto em um país diferente daquele pelo qual entrou em território da União Europeia – o que faz com que os países iniciem arrastadas batalhas burocráticas para conseguirem transferir as responsabilidades pela acolhida. Para o professor Naïr, as medidas europeias focadas no curto-prazo não correspondem à demanda migratória, que tem aumentado consideravelmente nos últimos 30 anos.

Cenários como a ilha italiana de Lampedusa ou o porto francês de Calais atingiram os meios de comunicação com reflexos desse drama. Na primeira, corpos negros e árabes boiavam no mar ou atingiam a praia, enquanto sobreviventes contavam sobre seu périplo após algum conturbado resgate pela Guarda Costeira italiana. Além de denunciarem também perseguições em alto mar e tratamento criminal, algumas mulheres acusam oficiais italianos de grave abuso sexual. Para outros, o destino é mesmo a prisão, enquanto sua “situação” burocrática é avaliada ou enquanto corre o processo de deportação. Calais, um porto francês que faz conexão com o Reino Unido, é outro dos cenários em que graves abusos dos direitos humanos são frequentemente denunciados. Os casos são por vezes contados pela mídia tradicional como uma iminente invasão que deve ser ali contida. O local é assim conhecido ao menos desde 1999, quando foi aberto o campo de refugiados Sangatte, numa medida para controlar o influxo de seres humanos buscando asilo. Mas o então ministro francês do Interior, Nicolas Sarkozy, ordenou o fechamento do local em 2001, provocando rebeliões, a contínua insegurança e uma condição de emergência humanitária, já que migrantes continuaram chegando. As autoridades francesas estimam que atualmente vivam ali cerca de três mil pessoas em condições precárias, em um conjunto de campos compostos por barracas, conhecido como “Selva”.

Além da estreiteza na formulação de políticas que se dediquem mais à “segurança humana” do que à segurança seletiva, paliativa e militarizada, há também uma persistente insuficiência na análise das causas e das responsabilidades pela mais recente “crise migratória”. Além dos impactos da crise internacional, que leva milhões, inclusive da Europa, à migração dita “econômica”, os conflitos acumulam-se à medida em que os países que os gerem ou abastecem, fieis a suas políticas imperialistas ou neocolonialistas, gastam mais recursos na guerra do que na mitigação dos seus efeitos sobre as populações atingidas – que estão lá, do outro lado da fronteira ou na outra margem do oceano, mas não por muito tempo. Desde à investida com tratados de “livre-comércio” ofensivos ou políticas de militarização no retrógrado “combate ao narcotráfico”, que derramam suas consequências pelas fronteiras entre México e Estados Unidos, até a insistência na manipulação de grupos armados da população descontente ou até mercenários estrangeiros para a derrubada de governos, a geopolítica mundial está dominada pelas causas e consequências de inúmeros conflitos e tensões sociais.

De acordo com o último relatório da Escola de Cultura de Paz da Universidade Autônoma de Barcelona, havia ao menos 36 conflitos armados ativos no final de 2014, sendo que 13 deles decorrem apenas na África, 12 na Ásia, seis no Oriente Médio, quatro na Europa e um na América Latina. Um daqueles que têm perdido atenção, no quintal europeu, é o da Ucrânia, onde um golpe sustentado pela UE e pelos EUA substituiu à força um governo eleito por uma farsa neofascista. Mais de 4.700 pessoas já morreram e um milhão foi forçado a se deslocar devido à violência, sobretudo no leste. No Iraque, também um cenário já considerado “notícia velha” pelos meios de comunicação, 2014 foi um ano recorde que superou o pico da violência desde a invasão estadunidense de 2003. Entre 12 e 17 mil pessoas foram mortas e outras milhares foram obrigadas a buscar refúgio. Na Síria, de onde partiu o pequeno Aylan Kurdi e sua família, a destruição de mais um país alastra-se como fogo em palheiro, embora a resistência do seu povo mantenha o país unido. E a lista estende-se.

O retumbante silêncio dos Estados Unidos da América

Se nos dedicarmos a compreender cada um dos conflitos armados que tem provocado o deslocamento de sociedades inteiras rumo à Europa perceberemos que há um país em especial que, por mera questão geográfica, não tem sido o primeiro destino destas famílias, mas que tem grande responsabilidade por seu “não lugar” no mundo. Trata-se dos Estados Unidos da América, cujo silêncio retumbante ao longo de 2015 e nos últimos dias é desconcertante.

O Presidente Russo Vladimir Putin foi um dos primeiros a denunciar a responsabilidade dos estadunidenses, especialmente com relação ao arrastado, e sem desfecho aparente, conflito na Síria. Uma guerra que já provocou milhares de mortes, milhões de refugiados, destruição de patrimônio incalculável da história da humanidade e ofereceu campo fértil ao autodenominado “Estado Islâmico”, cujo desgoverno favorece os interesses estadunidenses na região. Às custas de quantas vidas humanas?

Utilizando-se do mesmo expediente que justificou a invasão do Iraque em 2003, de que o governo sírio teria empregado armas químicas, a ofensiva dos EUA contra o governo sírio provocou uma das maiores crises humanitárias das últimas décadas. Já em 2013, o chanceler russo Serguei Lavrov alertava para a irresponsabilidade dos EUA, Reino Unido e França em instigar “rebeldes” sírios contra o governo de Bashar al-Assad ao “provocarem emoções entre pessoas fracamente informadas que, uma vez excitadas, têm de ser satisfeitas pela guerra”. Este mesmo meio de manipulação da opinião pública em favor de ataques até então injustificáveis foi utiliziado com relação ao Afeganistão, ao Iraque e à Líbia.

Enquanto escrevemos estas notas, lemos a notícia de que o Estado Islâmico ocupa e passa a controlar o último posso de petróleo da Síria, segundo o próprio Observatório Sírio de Direitos Humanos, que por muito tempo foi, à distância, a fonte privilegiada do Ocidente para as acusações contra o governo sírio. Enquanto Putin e Lavrov consideram uma coalizão militar que reforce Damasco na luta contra um inimigo comum da humanidade, o já famigerado Estado Islâmico, Obama e seu secretário de Estado John Kerry propõem estender seus ataques aéreos às tropas de Assad. Curioso notar que estas mesmas diferenças entre Obama e Putin sobre a Síria levaram à desestabilização da Ucrânia e às disputas pela Crimeia, em especial pelo porto de Sebastopol. Está desnudado mais uma vez um “tabuleiro” geoestratégico e a persistência na guerra para o cerco cujas consequências transbordam as fronteiras e finalmente batem à porta dos disputantes.

Enquanto os dois gigantes se digladiam, populações inteiras se movem desesperadamente e se jogam rumo à Europa como mariposas que, em busca de luz, morrem ao se chocar com a lâmpada.