Publicado 25/09/2015 13:52
Pergunta: As ciências sociais sempre debateram o tema do trabalho. Na década de 1980, quando a abertura política começou, o sindicalismo chegou a ser bastante estudado no Brasil. As universidades produziram muitos estudos sobre o sindicado e organização no local de trabalho. Mas hoje é muito pouco estudado e por isto é, às vezes, até mal interpretado pelo senso comum. Como resolver esta questão?
Carolina Maria Ruy: Pode-se dizer que o triunfo circunstancial da agenda neoliberal, que dominou a década de 1990, fomentou um pensamento individualista, avesso aos movimentos sociais. Avesso, em especial ao movimento sindical, que é a base fundamental da luta social, e que atinge em cheio o coração do capitalismo, porque o trabalhador é quem produz. Esse pensamento ditou a regra nas universidades e é forte até hoje. O sindicalismo virou uma coisa “fora de moda”, taxado de atrasado, de atrelado à um passado ainda meio caipira, sem a sofisticação intelectual dos teóricos do neoliberalismo. Até mesmo grupos que se diziam progressistas, nas universidades, desprezavam o sindicalismo. Por exemplo: na faculdade de geografia da USP, que cursei, havia um grupo de estudos chamado Grupo Krisis. Surgiu na Alemanha e tinha como mentor o sociólogo Robert Kurz, que pretendia fazer uma releitura do marxismo à luz da sociedade contemporânea (ele faleceu em 2012). O ponto central da sua teoria, e todas as discussões giravam em torno disso, da ideia que que o capital não se reproduzia mais através do trabalho, e sim através da especulação financeira. Com isso ele tirava totalmente o trabalhador da jogada, discutindo apenas o “valor” e a “mercadoria”. Era todo um esforço teórico, uma grande capacidade de abstração, uma elegância acadêmica, mas que negligenciava a questão fundamental do marxismo, que é o papel do operário que está lá na ponta do processo. Ou seja, era uma teoria bela, mas sem nenhuma compatibilidade com o mundo real. E isso em um grupo que se dizia “marxista”, imagina os demais…
Claro que sempre houve um ou outro professor que não pensava assim, e que reconhecia a importância do movimento sindical, mas esse tipo de pensamento, que o capital só se reproduz nos bancos e que o mercado rege as relações sociais, vendeu a ideia de que os partidos políticos, os sindicatos e o movimento estudantil eram coisas do passado. Pior do que isso, que eram instituições falidas.
A eleição do Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, por ele ter vindo do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, obrigou os intelectuais a pensarem a trajetória do Lula e, assim, refletirem sobre o sindicalismo. Mais do que isso, toda a mudança que se deu na América Latina no início do século 21, com a emergência de governos progressistas na Argentina, Venezuela, Bolívia, Equador, Uruguai, impôs uma mudança de pensamento. Mesmo assim ainda há muito preconceito e elitismo dentro das universidades, como a USP.
Não falta uma maior proximidade do movimento sindical com as Universidades e vice-versa?
O ideal seria que o sindicalismo fosse abordado nas universidades de uma maneira mais profunda e realista. E que os intelectuais estivessem mais presentes no dia a dia dos sindicatos e das centrais sindicais, para enriquecer o debate. Nós do Centro de Memória Sindical costumávamos promover atividades com trabalhadores e intelectuais, não apenas para o público, mas também para fortalecer esse vínculo. Existem intelectuais, não só da academia, mas que estudam e pensam a sociedade (que são formadores de opinião), próximos dos sindicalistas, que convivem intimamente com o movimento no dia a dia, como o João Guilherme Vargas Neto e o Diógenes Sandim. Mas de fato, pessoas como eles não são reconhecidas por seus vínculos com as universidades. Os professores, que estão formando novos profissionais, não estão no dia a dia dos sindicatos. Fora uma ou outra exceção, como o John French, professor da Universidade Duke, nos EUA, que estuda o sindicalismo brasileiro e é uma pessoa próxima. Quando esteve no Brasil ele foi ao Centro de Memória e chegou a participar de um encontro com o João Carlos Juruna, secretário geral da Força Sindical, e com o Milton Cavalo, tesoureiro do Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco e presidente do Centro de Memória Sindical. É uma exceção, e não é no Brasil, mas não deixa de ser um bom exemplo.
Por outro lado, me pergunto se também não há, por parte dos sindicalistas um certo descaso em relação à possibilidade de se aproximar das universidades. Até há uma ideia geral que a formação é importante e deve ser incentivada. É por isso, inclusive, que os sindicatos mantem o Centro de Memória Sindical. Mas não se criam condições reais para que isso se fortaleça. Quando fazíamos debates sobre temas teóricos, culturais e históricos eu não sentia que havia muito interesse e participação, nem mesmo da juventude dos sindicatos. O imediatismo reinante faz com que esses eventos pareçam inúteis. Mas isso está muito longe de ser verdade. É no cotidiano do sindicalista, no seu contato com a base de trabalhadores, no seu contato com os poderes municipal, estadual e federal que essa formação teórica, ou a fraqueza dela, se manifesta. A formação teórica permite ao sindicalista saber da história do país, compreender as entrelinhas dos discursos políticos e econômicos, e, sobretudo contemplar a sociedade como um complexo de sistemas interligados. Essa deve ser uma capacidade do sindicalista atuante, da sua própria cabeça, e não uma função terceirizada a um assessor. E precisa ser exercitada sempre.
Neste caso o diálogo com a universidade seria muito benéfico, mas de um modo geral são mundos que não se conversam e que perdem muito com isso, os dois lados.
Ainda nesta questão gostaria de levantar o exemplo do Dieese, que vai na contramão disso que falei acima. O Dieese é um ótimo exemplo da relação entre sindicalistas e intelectuais na construção e manutenção de uma entidade que serve à toda a sociedade. Desde sua fundação, em 1955, o Dieese é presidido por um sindicalista e dirigido por um intelectual. E hoje existe a Faculdade do Dieese, que faz justamente esta conexão do mundo acadêmico com o mundo dos trabalhadores. Seguindo esse exemplo o Centro de Memória Sindical também procura fomentar e apoiar da melhor maneira a formação teórica e a história do movimento sindical.
O Brasil vive uma crise econômica e política. Mas a pretexto de combater a corrupção e criticar o governo federal, há muita gente atacando o movimento sindical e os avanços trabalhistas e sociais…
Em relação aos empresários, aos patrões, eu diria que se aproveitar da crise para cortar direitos dos trabalhadores é algo típico do sistema capitalista. Isso aconteceu durante a crise internacional, que se iniciou na Bolsa de Nova Iorque (EUA), em 2008. Naquela época, no Brasil, muitas empresas que estavam indo bem aproveitaram para demitir ou aplicar o chamado layoff. E as centrais sindicais fizeram uma grande campanha contra isso com a palavra de ordem “O trabalhador não vai pagar pela crise”. É um exemplo. Eu não acho que seja uma questão de caráter dos empresários. Não acho que eles são “maus”, que querem prejudicar os trabalhadores. É todo um sistema que converge para isso porque é baseado na obtenção privada do lucro e não na construção coletiva da sociedade. Por isso a atuação sindical é essencial. Sem ela os trabalhadores sempre levariam a pior. São os sindicatos que garantem a proteção legal dos trabalhadores seja nas negociações com as empresas, seja no diálogo com o poder público. Historicamente o movimento sindical influenciou e influencia na formação da legislação brasileira. Influenciou na criação da Consolidação das Leis Trabalhistas, de 1943, na redução da jornada de trabalho de 48 para 44 horas semanais, em 1985, na Lei 12382, de março de 2011, que garante a política de valorização do salário mínimo, na regulamentação do trabalho terceirizado, na construção da atual Política de Proteção ao Emprego, entre outras coisas.
Por isso também é importante quando um sindicalista ingressa na vida política. Essa atuação sindical e política é benéfica para os trabalhadores e fortalece o movimento. As elites empresarias e rurais ainda são a imensa maioria na política. Trabalham para manter seus privilégios e, de modo geral, são hostis à ideia de dividir suas bancadas parlamentares com políticos procedentes dos trabalhadores. Por isso o ingresso na política é positivo. Para defender e garantir os direitos do povo.