Urariano Mota: Mulheres de Sol

O escritor Urariano Mota enviou, com exclusividade ao Portal Vermelho, um trecho de seu romance inédito, Em busca do terrorista. Trata-se do capítulo Mulheres de Sol. O livro ainda não tem data para chegar ao leitor, mas enquanto isso é possível apreciar um pedacinho de mais esta obra do escritor pernambucano.

Urariano Mota - Reprodução

Urariano é colunista do Portal Vermelho e da Boitempo, publicou, entre outras obras, Soledad no Recife, sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973 e O Filho Renegado de Deus, uma narração sobre Maria, vítima da opressão cultural e de classes no Brasil.

Leia na íntegra o capítulo de Em busca do terrorista:

Mulheres de Sol, ou mulheres à semelhança do sol, eu diria. Quantas? Uma, duas, três … infinitas? Em número, não, mas infinitas pelos significados que vêm ganhando. Passo a mão sobre os olhos e escrevo com a lembrança. É curioso, é revelador o quanto elas crescem à distância. Em vez de se apagarem como estrelas perdidas na noite, ganham mais luz de significações. Desde as mais incultas, ignorantes de escolas ou de livros, até as de ótimas letras ou ciências, que viviam nos próprios corpos o conhecimento. Penso em Maria, em Dora, Carmem, Zizinha, em mulheres do povo que o tempo sem registro comeu. Desorganizadas, sozinhas, alheias e alienadas de ideias comunistas, mas que ainda assim viveram a política, sem disso ter consciência. Elas crescem para mim na quadra da maturidade que chega depois dos sessenta anos. Fundamentais como o ar, leite materno, chão, manga, água, canto de pássaro na manhã, e não nos dávamos conta da sua importância. E quando as descobrimos, nos dizemos “eu sou apena sum homem pequeno, bruto, cego, surdo e sem todos os cinco sentidos”, porque delas vivemos sem ter a percepção.

Mas me refiro agora a outras mulheres, determinadas por coragem e convicção política, que nos encandearam na primeira juventude. Luminosas na altura dos nossos 20 anos de idade, na ditadura Médici, essas mulheres nos encandearam quando nascíamos para a juventude e nos encandeiam até hoje. Nesta maturidade recente, que muitos julgam como o tempo dos idosos, pois não sabem das estações de ardor que mudam e não morrem, nestes anos da compreensão do que antes vivemos, a força das luminosas sempre está voltando. Retornam, quando menos esperamos. Retornam, até mesmo quando procuramos outra história, outro assunto, outra direção. Assim como hoje, ao ver fotos do acervo do jornal Última Hora. Ao lado de um registro fotográfico do pintor Portinari no ateliê, fui assaltado pela imagem da atriz Vanja Orico na rua, tentando parar carros do exército em 1968. Mas o que era aquilo? Uma luz que pensávamos estar esquecida, luz oculta, aprisionada no quarto escuro, retornada com mais brilho que a fita de Vanja no cinema. Ainda ontem, por exigência deste capítulo, li resumos biográficos das militantes estupradas sob tortura e mortas na ditadura. Enquanto era ferido pelo específico da brutalidade sobre essas bravas, naquela hora limite da extrema abjeção, sujas de esperma do torturador sobre os seus corpos nus, tristes ideias me chegaram. Na primeira delas houve a confirmação de uma velha suspeita: as imagens das vítimas torturadas e mortas são pornográficas. Aqueles rostos desfeitos, desfigurados, aquelas expressões de museu de horror sempre foram a expressão mais eloquente da pornografia, ou seja, o ato de abstração de humanidade. Até antes das imagens, havia uma pessoa. Depois, um animal abstrato, arrancado de qualquer amor, ou ilusão de amor.

Então, ao ler os relatos dos últimos minutos de pessoas nuas e seviciadas, confirmei o que eu não buscava: a tortura é também um ato pornográfico. Isso quer dizer, rouba da pessoa qualquer humanidade, e depois serve-se do corpo com o domínio que julga absoluto. Julgavam, porque o depósito último do ser vomitava, e o espírito, a pessoa, voava, assim como A pequena vendedora de fósforos, de Andersen, cujo espírito subiu para um lugar onde não haveria egoísmo, fome e humilhação. A humanidade resistia, em uma história mais fantástica que o fantástico dos contos de Andersen. Ali, todas eram tornadas patinhos feios, mas seus espíritos batiam asas como um cisne, para além dos limites da degradação.

No entanto, chegou até a mim também o que não era bem uma triste ideia. Foi como uma insatisfação, porque os relatos lidos se uniam como uma coleção dos derradeiros instantes, e de tal forma que pareciam fazer uma segunda pornografia. As vidas, a iluminação das suas histórias vivas, não estava ali. Assim como no livro “Capesius, o farmacêutico de Auschwitz”, onde a denúncia dos crimes nazistas termina por se vulgarizar, porque humanos passam a cumprir apenas o papel de um joguete, um fantoche que um dia foi carne. Falta-lhes o drama, o problema, a tragédia, além do fato de que foram jogadas em fornalhas e câmaras de gás. A simples, se houver alguma simplicidade no monstruoso, a simples menção de pessoas empurradas para fogueiras e salões de asfixia em si é trágica, sabemos. Mas a repetição dos casos, sem que se fale das suas vidas antes, é uma segunda brutalidade. Os justos dos anos 70 diriam que é uma injustificável e criminosa omissão. Mas hoje dizemos que é sucumbir ao torpor burocrático, que se conforma por uma adaptação ao horror. E não pretendo ir até o exagero de falar que de igual maneira agiam os médicos-legistas quando falsificavam causas mortis, nem mesmo como os de hoje, quando descrevem com fórmulas prontas o estado cadavérico. Não. Pois quero dizer de modo mais preciso: importa mais a luz das suas vidas. Então lhes digo, sem qualquer retórica, que eram mulheres de Sol. Que são do Sol, ao revê-las por força da memória que as revisita nos momentos em que o coração menos espera.

Mas escrevi a palavra “coração” acima por excesso de pudor, descabido como todo pudor na hora da verdade. O pensamento é outro, porque devo dizer e falar: revejo-as com a mais íntima pulsão, como em uma puberdade renovada.