Mulheres chilenas lutam pelo direito ao aborto em caso de estupro

Tramita no Congresso chileno desde 31 de janeiro deste ano o Projeto de Lei que regula a descriminalização do aborto no país em alguns casos. Proposto pela presidenta Michelle Bachelet, o projeto prevê a interrupção da gravidez em três situações: quando houver risco de vida para a gestante, quando o feto padeça de má formação incompatível com a vida extrauterina, ou quando a gravidez seja resultado de abuso sexual.

manifestação pela descriminalização do aborto no Chile - Divulgação

Dados do governo revelam que, de 2001 a 2012, foram mais de 395 mil casos de aborto no país, o equivalente a 33.000 mulheres internadas por ano em hospitais devido a complicações relacionadas a interrupções da gravidez. Organizações de direitos humanos esperam o avanço da matéria no Parlamento.

O Projeto já foi aprovado pela Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados, com oito votos a favor e cinco contra. No entanto, foram realizadas modificações no texto, que deve ainda seguir para discussão no plenário da Câmara e posterior avaliação pelo Senado.

Para Fernanda Doz Costa, pesquisadora da Anistia Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais nas Américas, o Chile deve se afastar, definitivamente, dessa proibição. "A evidência é clara no sentido de que a proibição do aborto em todas as circunstâncias não impede que os abortos aconteçam. Tudo o que se consegue é forçar as mulheres e meninas, particularmente aquelas com poucos recursos, a buscarem tratamentos ilegais e perigosos, que colocam suas vidas em risco. Embora ainda limitada, a lei que está, atualmente, em discussão pode tornar-se um importante primeiro passo na direção certa”.

Em agosto deste ano, o Escritório Regional para a América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) realizou um encontro sobre os direitos sexuais e reprodutivos no Chile, com debate sobre a interrupção voluntária da gravidez no país. As atividades ocorreram em Valparaíso, organizadas em conjunto pelos escritórios do Fundo de População das Nações Unidas (Unfpa), pela Organização Pan-Americana de Saúde no Chile (OPS/OMS) e pela organização não governamental Miles Chile.

Números

Na apresentação do Projeto de Lei, Michelle Bachelet defendeu que a dignidade das mulheres é um atributo inviolável e deve ser respeitada e protegida. Ela citou dados de 1960, quando a mortalidade materna girava em torno de 299 casos para cada 100 mil nascidos vivos, sendo mais de um terço em consequência de abortos clandestinos. "20% das camas obstétricas estavam ocupadas por mulheres com abortos complicados. O grupo mais vulnerável eram mulheres de baixo nível socioeconômico, com três filhos ou mais.”, diz o documento.

Segundo a presidenta, existe uma realidade que não se pode ignorar. Em média, a cada ano, se internam 16.510 mulheres com gestação de menos de 22 semanas, nas quais há complicações de saúde, como gravidez ectópica (tubária) ou mola hidatiforme (excesso de desenvolvimento da placenta e pouco ou nenhum tecido embrionário). Estima-se ainda que o número de mortes neonatais por má formação seja em torno de 500 por ano, no Chile. Em relação aos casos de gravidez decorrentes de crimes sexuais, não há estatísticas oficiais, mas, de acordo com a mensagem da presidente do país, ocorrem em 10% dos casos de violação.

O Chile ainda é um dos poucos países da América Latina onde o aborto é proibido, mesmo se for espontâneo, ou seja, aquele que ocorre de forma involuntária até a 12ª semana de gestação. A legislação antiaborto foi implementada no país, em 1989, durante a fase final do regime ditatorial de Augusto Pinochet. O Código Penal chileno estabelece penas de prisão para a mulher que aborta, aumentando a pena no caso de aborto intencional. Segundo o Código, os profissionais de saúde também são obrigados a denunciarem a mulher caso observem a ocorrência.

Segundo o relatório da Anistia Internacional – "Chile não protege as mulheres: a criminalização do aborto viola os direitos humanos” –, em 2014, no país, 174 pessoas foram investigadas, judicialmente, por "aborto consentido”, destas, 113 eram mulheres. Até abril deste ano, a Promotoria do Chile já havia condenado oito pessoas pelo crime de aborto. Outro número preocupante é que, a cada dia, no país, 17 mulheres são violentadas e 34 são abusadas sexualmente, das quais 75% são menores de idade. Os dados são da Unidade de Crimes Sexuais da Promotoria Nacional. Esta realidade enfrentada por crianças e adolescentes, quando resulta em gravidez, acarreta ainda mais sofrimento para as vítimas, por se verem forçadas a continuarem a gestação.

Dos 33 mil abortos anuais revelados por Michelle Bachelet, 3.600 correspondem a jovens entre 10 a 19 anos, de acordo com o Ministério da Saúde. O informe da Anistia pontua que o número de abortos pode ser ainda maior, em torno de 60 mil a 70 mil por ano. Alguns estudos estimam a cifra de 160mil abortos por ano.