Immanuel Wallerstein: O novo Oriente Médio

Washington já não dá as cartas e enredou-se em contradições – mas mantém ilusão de poder. Ao fazê-lo, cria, numa região decisiva, barril de pólvora global.

Por Immanuel Wallerstein, no Outras Palavras

Garoto pedala na Faixa de Gaza

Barack Obama está sendo criticado por todos os lados, por qualquer coisa que faça, nestes dias, em relação ao Oriente Médio. E as críticas são pertinentes, já que não há provavelmente nada que o presidente possa fazer para desempenhar, na geopolítica rodopiante do Oriente Médio, o papel decisivo que desejaria. Não significa que todas as suas decisões sejam erradas. Muitas são, mas algumas parecem inteligentes. O fato é que virtualmente nenhum Estado na região, ou com interesses nela, está realmente alinhado com os EUA. Todos têm suas queixas e prioridades – e querem satisfazê-las, ainda que Washington os pressione a não fazê-lo.

Há quatro arenas que deveriam ser chamadas de pontos cruciais da região – ou, talvez, os pontos mais cruciais: Irã, Síria, Afeganistão e Israel/Palestina. Os críticos de Obama dizem que ele não tem uma política “coerente” em nenhuma destas regiões. A crítica não deixa de ter razão.

A política mais clara, em termos relativos, diz respeito ao Irã. Os EUA têm feito um enorme esforço para fechar, com Teerã, um acordo que oferece, essencialmente, uma barganha: um Irã sem armas nucleares em troca do fim das sanções econômicas. Tal acordo já foi assinado. Em ambos países, o Poder Legislativo também deu o primeiro passo para a ratificação. Historiadores futuros talvez apontem o fato como a maior conquista externa de Obama (junto com a retomada das relações diplomáticas com Cuba). Este é o lado do presidente como promotor da paz.

No entanto, o acordo ainda precisa ser ratificado de diversas outras maneiras, dos dois lados. Embora isso pareça provável, certamente não é inevitável. Como se fala tanto, no caso de acordos deste tipo, a verdade está nos detalhes. Eles são complicados e passíveis de diferentes interpretações, dos dois lados. Interpretações distintas levam a tensões contínuas. Quarenta anos após a assinatura de um acordo similar e igualmente notável, na Irlanda do Norte, sua interpretação ainda dá margem a disputas e neste exato momento ele enfrenta a ameaça de uma ruptura.

A situação é menos clara no Afeganistão. O Talibã parece ampliar continuamente sua força e controla novas regiões, ao menos durante a noite. Os EUA enviaram tropas ao país para afastar o grupo e mantê-lo distante. Presume-se que o governo afegão queira também derrotar o Talibã.

Mais importante: o Irã também quer derrotar o Talibã. Mas os EUA e o Irã não estão dispostos a colaborar de modo aberto para este objetivo. E o governo afegão está dividido entre afirmar sua independência em relação dos EUA e sua necessidade (crescente) de manter acesso a assistência militar. O governo paquistanês parece estar ajudando o Talibã. E o governo indiano parece querer ajudar o governo afegão mais diretamente do que Washington desejaria.

A política dos Estados Unidos não é coerente, porque o país tenta perseguir um conjunto de objetivos que entram em conflito uns com outros. Os EUA desejam reforçar um governo estável, e portanto estão comprometidos com o apoio ao atual governo afegão. Para fazerem isso, os militares de Washington insistem que mais soldados norte-americanos são necessários. Mas Obama prometeu reduzir as forças dos EUA a um pequeno grupo de instrutores não-combatentes, até o fim de seu governo. Não é possível fazer isso e assegurar, ao mesmo tempo, a sobrevivência de um chamado “governo afegão estável”, especialmente porque a estabilidade do governo depende de uma disputa não-resolvida e cada vez mais aberta com seus oponentes sem relações com o Talibã.

Em relação à Síria, o último adjetivo que alguém poderia aplicar à política norte-americana é “coerente”. De um lado, os EUA tentaram formar uma “coalizão” internacional de países comprometida em derrotar o Estado Islâmico (IS, Daesh ou ISIL), ainda em expansão. Washington também está comprometida, em teoria, com a destituição do presidente sírio, Bashar al-Assad. O que os EUA não desejam é envolver tropas em mais uma zona de guerra civil no Oriente Médio. Em vez disso, oferecem lutar contra o IS com drones que bombardearão as unidades do grupo terrorista – porém, sem ter sequer tropas para guiar estes drones. A consequência inevitável são “danos colaterais” que intensificam o sentimento antinorte-americano na Síria.

Enquanto isso, a Rússia deixou claro que está comprometida com a manutenção de Assad no poder, ao menos até que haja uma resolução política entre Assad e a chamada “oposição moderada”. Esta é, ela mesma, um grupo complicado. Os EUA desperdiçaram muito dinheiro e energia para treinar um grupo seleto na oposição. Os militares norte-americanos acabam de admitir que este esforço foi um fracasso completo. A grande maioria dos grupos que receberam apoio desintegrou-se. Além de fugirem dos campos de batalha, eles entregaram seu equipamento à al-Nusra, um grupo filiado à al-Qaida, que, presume-se, os EUA não queiram amparar.

Ninguém segue a liderança norte-americana. A Turquia concordou, de modo relutante, com sobrevoos dos aviões e drones dos EUA em seu território – mas recusou-se a incentivar apoio às tropas curdas que estão de fato combatendo o IS. A Arábia Saudita também não tem uma política coerente. Está em apuros com as forças da al-Qaida, mas ao mesmo tempo dão-lhes algum apoio financeiro e diplomático, como parte de sua tentativa de conter a influência iraniana no Oriente Médio. O Reino Unido e a França dizem que apoiam os EUA, mas Londres enviará apenas drones e a Paris critica Washington por não pressionar Assad mais duramente. Israel parece não ter clareza alguma sobre o que fazer. Telavive vê o Irã como seu maior inimigo, mas na verdade concentra-se em atacar os palestinos, o que significa uma política para a Faixa de Gaza e outra na Síria e no Líbano.

Em relação a Israel/Palestina, há um crescendo de violência e de retórica de ambos os lados. Muitos analistas dizem que se trata da terceira Intifada, alguns considerando que ela começou há um ano. Qualquer que seja o rótulo, é óbvio que Israel está perdendo, lenta mas seguramente, a batalha diplomática na Europa Ocidental e mesmo nos Estados Unidos. Embora o primeiro ministro Benjamin Netanyahu desejasse normalizar as relações abaladas com Obama, ele teme ser desafiado, nesta atitude, por setores à sua direita. Não pode fazer muito para mudar a política israelense. E também Obama pode fazer pouco. Enquanto isso, o conflito Israel/Palestina mantém-se como potencial gatilho para uma explosão generalizada no Oriente Médio, algo tão grave que poderia afetar o conjunto da economia-mundo, que já está em condições muito frágeis.

Se alguém pode enxergar, neste quebra-cabeças, alguma evidência de que os Estados Unidos são capazes de controlar a situação e ditar os termos para qualquer outro ator, é porque está vendo coisas que não vislumbro. Além de não serem uma potência hegemônica, os EUA já não são sequer o ator mais poderoso nesta região fragmentada. No entanto, não desejam admitir esta realidade para si próprios, o que constitui um perigo para o mundo todo.

Tradução: Antonio Martins