Coagindo o saber: Iminência na USP, ameaça para todos

A lógica que guia os movimentos do reitor é conseguir que a dedicação integral à docência, pesquisa e extensão passe de predominante para minoritária.

Por Adrián Pablo Fanjul*, na Carta Maior 


Coagindo o saber: Iminência na USP, ameaça para todos

Cena 1

O gestor sentado na frente, representando a reitoria, em uma reunião com docentes no salão maior da Faculdade. O assunto é um plano elaborado pelo gestor que, dentre outras coisas, pode cortar em 75% a dedicação e os proventos de qualquer professor da instituição. No início da reunião, ao ser questionado pelo embasamento acadêmico do projeto, o gestor sentencia que seu único fundamento é ter sido proposto pelo reitor. E acrescenta:

– Ao contrário da Dilma, ele tem um projeto e está querendo realizar.

Um murmúrio percorre a sala. É 20 de agosto de 2015, e dias antes teve lugar uma das grandes manifestações pelo impeachment da presidenta. Os professores presentes sabem que os gestores e “donos” dessa universidade são de um partido que torce pela saída de Rousseff, cuja renúncia foi pedida publicamente, no mesmo dia, pelo chefe desse partido. Por sua vez, o gestor tem como calcular que a maioria dos professores presentes, por um motivo ou por outro, não veem o impeachment com bons olhos. O efeito de provocação é claro para ambas as partes. Uma professora sugere:

– Melhor não entrar nessas searas.

– Eu entro em toda seara que eu quiser – é a resposta sorridente do empoderado gestor.

Cena 2 

No mesmo salão da mesma Faculdade, dias antes, professores ouvindo um outro gestor, que também representa a reitoria. O clima é de preocupação e angústia, já que um número inusitado de docentes encontra que sua dedicação é proposta para rebaixamento, sem motivos claros, e tendo excelente conceito na sua área. Muitos outros temem que o mesmo venha acontecer com eles, e, mesmo os que estão “a salvo”, sabem que sobre eles recairá o trabalho dos primeiros.

O gestor preside a comissão que propõe os rebaixamentos e explica que, na verdade, não há critérios claros. Diz que tem que ser convencido da qualidade do trabalho dos docentes, e conta o caso de um que conseguiu convencê-lo com quarenta cartas de alunos.

As cenas parecem de uma típica “facul” privada, algum “centro universitário” da vida. Mas ambas acontecem no salão nobre da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

É que a reitoria comandada por Marco Antônio Zago desenvolve, desde o ano passado, um conjunto de ações que apontam para uma reestruturação radical da função docente na maior universidade do país. Começou com Zago dando depoimentos à revista Veja e ao Estadão, nos quais propunha diminuir a quantidade de docentes em dedicação exclusiva à Universidade, qualificando essa integralidade como uma limitação para o gestor eficiente e qualificando-a como uma “jabuticaba brasileira”. E das palavras passou à ação por dois caminhos.

Por uma parte, mediante uma comissão presidida pelo gestor da “cena 1”, desenhou um plano de reforma do Estatuto com mudanças como as seguintes:

a) Todos os docentes, mesmo passado o período probatório de 6 anos, estariam sujeitos, até o final da sua carreira, a uma avaliação quinquenal na qual uma comissão central decidiria, independente da opinião dos departamentos, se continuam em dedicação exclusiva ou se passam a um regime de dedicação de metade do tempo (24 horas semanais) ou de quarta parte (12 horas semanais), com a consequente redução da remuneração.

b) Na primeira versão do plano, estipulava-se que os departamentos deviam apresentar “equilíbrio numérico” entre os docentes em cada regime, o que significaria que mais de 60% dos atuais professores da USP sairiam da dedicação integral, devendo procurar outras fontes de trabalho e de renda. Na segunda versão não há especificações a respeito, mas se mantém a potestade única da comissão da reitoria para decidir sobre os regimes de trabalho e a preferência pelo tempo parcial.

c) Todos os novos concursos docentes seriam abertos para tempo parcial, de 12h semanais.

d) A promoção na carreira ficaria restringida aos desempenhos “excepcionais”.

Por outra parte, enquanto não obtém a aprovação dessas mudanças pelo Conselho Universitário, a reitoria começou a aplicá-las em cima daqueles que já pode atingir: os docentes em período experimental, que na USP dura 6 anos. Cada dois anos, o professor apresenta um relatório de atividades, que é avaliado pelo Departamento com base em pareceres, muitas vezes externos. Desde final de 2014, a Comissão Especial de Regimes de Trabalho (CERT), presidida pelo gestor da “cena 2” e que responde exclusivamente à reitoria, tem rejeitado um número inédito de relatórios aprovados no mérito pelos pareceristas, e tem proposto a extensão do período por mais dois anos ou rebaixamento de regime do professor, contra a postura do departamento. O estudo (1) realizado pelo professor Marcio Moretto Ribeiro mostra que essa rejeição quadruplicou em apenas um ano.

Os critérios da “reprovação” da CERT mostram-se extremadamente confusos. Em 15 anos que levo na USP só lembro de casos excepcionais, e no último ano aconteceu com pelo menos doze colegas da minha Faculdade, dentre os quais a maioria se destaca pelo reconhecimento da sua dedicação pelos outros colegas, alguns tendo sido coordenadores de curso ou chefes de departamento. Um motivo aparente seria a publicação em quantidade “insuficiente” de artigos em revistas indexadas, desconsiderando-se qualquer outro tipo de publicação feita pelos colegas, inclusive a de livros por editoras de prestígio. Mas o levantamento de Ribeiro mostra o caso de um docente que, no mesmo ano em que é reprovado pela comissão de Zago, obtém bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq, um dos indicadores mais fortes de reconhecimento no campo científico, ao qual não se tem acesso sem publicações indexadas.

A lógica que parece guiar os dois movimentos de Zago é conseguir que a dedicação integral à docência, pesquisa e extensão passe de ser o regime predominante na USP a ser minoritário. Não é difícil imaginar o efeito deletério que isso teria sobre a universidade como espaço de produção de conhecimento e de desenvolvimento de saberes para a sociedade. Basta imaginar que, a partir de agora, todo professor da USP tenha que viver com a atenção posta em outras possibilidades de subsistência “se por acaso”, a ainda dedicar tempo a lutar contra seus colegas para entrar na “cota” de cada regime de trabalho, e teremos uma ideia de onde vai ficar a construção de pesquisas de fôlego e de projetos que envolvam a universidade com algum tipo de função social. Os horizontes curtos serão para o benefício privado que requer resultados imediatos. Via “organizações sem fins de lucro” sempre alertas, é claro.

A perversidade e as reações

Para realizar esse projeto, Zago e colaboradores precisam agir fortemente no plano da subjetividade dos professores pesquisadores. Tem que implantar o que Halffman e Radder (2015, p 65) denominam “Lobo do management” da universidade, que “proclamou os acadêmicos como o inimigo interno: eles não são confiáveis e, portanto, devem ser monitorados, sob a permanente ameaça da reorganização ou da demissão. Os acadêmicos, por sua vez, mansamente se deixam jogar uns contra os outros, como ovelhas aterrorizadas e obedientes” . (2)

Com efeito, aterrorizar é preciso, o que explica também a leviandade, em diversos estilos, dos gestores. O da cena 1 pratica a prepotência: durante o resto da referida reunião, ainda desqualificou como “sem inteligência” as perguntas de um chefe de departamento, espetou que “tem que saber ler” a um professor titular que conta com muito mais produção e reconhecimento do que ele, e qualificou de “ficções para obter cargos” os relatórios dos departamentos. O da CENA 2 opta pela arbitrariedade errática: na sessão manifestou não ter critérios para avaliar livros publicados pelos docentes, sequer os da própria editora da Universidade. Tudo, toda realização é reprovável, e essa aleatoriedade é o fundamento da coação permanente.

As propostas de mudança de estatuto promovidas por Zago foram sintetizadas em um documento que passou pelas congregações (colegiados) das faculdades e institutos, sendo rejeitado na maioria delas. Colheu duríssimas e lapidárias críticas nos colegiados de unidades como a Faculdade de Direito, o Instituto de Biociências, a Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia, a Faculdade de Educação, a de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, o Instituto de Física e a Escola de Artes, Ciências e Humanidades. E em pouquíssimas das outras conseguiu adesão minimamente entusiasta. Mesmo assim, a reitoria está dando forma estatutária definitiva às propostas e pode, a qualquer momento, submetê-las ao Conselho Universitário, órgão ferrenhamente controlado pelo poder central, mercê à potestade do reitor para distribuir verbas, à forte presença de integrantes de fundações privadas e à fidelidade partidária ao governo do Estado que caracteriza a maioria de seus componentes.

Em consequência, a possibilidade de resistência interna está nas mãos dos próprios docentes, setor extremadamente heterogêneo na sua relação com a Universidade. Uma parte deles seria pouco afetada pelas mudanças, já que a Universidade não é, de fato, sua atividade principal. E dentro da maioria que seria atingida, pesa uma forte contradição. Diferentemente de causas sociais e democráticas com as quais a solidariedade confere capital simbólico dentro do próprio campo acadêmico (direitos humanos, moradia, saúde e educação públicas, igualdade de gênero e um longo etc.), reconhecer-se nesta disputa significa assumir a vulnerabilidade no próprio campo, coisa que resulta, para muitos, insuportável. E mais insuportável ainda se a própria descrição do problema envolve, além do evidente prejuízo para a produção de conhecimento na Universidade, a iniludível percepção de que existe, na vida do professor pesquisador, uma relação de trabalho assalariado.

Porém, os planos da reitoria da USP só podem realmente vingar se estendidos, no mediano prazo, para as outras universidades públicas, inclusive as federais. Caso contrário, o resultado seria um êxodo de docentes procurando espaços onde a humilhação consentida e a guerra demencial contra os pares não sejam parte da vida cotidiana. Por isso, a desestruturação do papel docente na USP é uma ameaça que deve deixar em alerta o espaço universitário do país todo e a sociedade que dele espera devolução.

(1) Márcio Moretto Ribeiro: “Análise dos relatórios de experimentação da EACH”. 25/8/2015, disponível em: http://www.adusp.org.br/files/carreira/cert2.pdf

(2) Halffman, Willem, e Radder, Hans: “The Academic Manifesto » . In : Minerva, June 2015, vol 53, issue 2, p 165-187. Tradução nossa.

*Adrián Pablo Fanjul é Professor no Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP