Paulo Kliass: Baixar os juros, em busca da trilha do desenvolvimento
A hegemonia política e ideológica exercida pelo poder do financismo nos tempos atuais é um fenômeno que impressiona. Por mais que a gente saiba do enorme poder da banca em nossa sociedade e tenha clareza a respeito de sua incrível capacidade de ganhar os corações e mentes dos indivíduos para suas causas, o fato é que sua influência alcança cada vez mais limites inimagináveis.
Por Paulo Kliass*
Publicado 25/11/2015 18:51
Os espaços dos grandes meios de comunicação não fazem outra coisa senão reproduzir a lógica expressada pelos agentes do sistema financeiro. Jornais, revistas, rádios e canais de televisão ouvem apenas as opiniões dos “especialistas do mercado” e apresentam essa visão parcial e comprometida do fenômeno econômico como se fora uma unanimidade de interpretação.
Quantas vezes já não nos deparamos com manchetes do tipo “economistas consideram que a medida” ou “analistas criticam a decisão” e por aí vai? No entanto, ao lermos o corpo da matéria, nos damos conta de que foram ouvidos apenas consultores de bancos ou dirigentes de empresas que atuam no mercado financeiro. Ou seja, trata-se de mecanismo que leva à deformação intencional e à manipulação da opinião pública.
Nem tente: não há alternativas!
Essa tem sido a marca da linha editorial dos grandes veículos, em especial desde a época do lançamento do Plano Real, em 1994. O esmagamento ideológico imposto pelas instituições multilaterais (FMI, Banco Mundial e similares), pelas instituições universitárias mais conservadoras e pelos formadores de opinião ultra liberais nos espaços de comunicação não deixava espaço para interpretações distintas daquela que estava em implementação pelo mundo afora. Chegou a ser bastante utilizado, inclusive, o acrônimo TINA – que vem do inglês “there is no alternative”, para expressar a postura arrogante daqueles que consideram dominar o essencial e impõem à grande maioria a triste sina: não existiriam opções fora do cardápio proposto pelo neoliberalismo.
No caso específico de nosso país, o mantra repetido à exaustão estava concentrado na defesa do plano de ajuste econômico e do tripé macroeconômico. Simples assim: ou bem se aceitava o modelo com todas suas injustiças e desigualdades, ou então seria mesmo a antevéspera do caos. Afinal, não há alternativa!
O tempo passou, houve a esperança da mudança em 2002, com a vitória de Lula. Mas o comando econômico continuou nas mãos do conservadorismo e da banca, com Palocci e Meirelles. Mais à frente ainda, em 2008, veio a crise econômica nos Estados Unidos e na Europa. A novidade é que parte dos dogmas do radicalismo liberalóide passou a ser colocada em cheque, até mesmo nos espaços de articulação multilateral e no interior dos próprios governos. Personalidades que sempre haviam representado o pensamento do Consenso de Washington fazem uma espécie de mea culpa e passam a professar uma abordagem com leves tinturas de heterodoxia e mesmo de desenvolvimentismo.
Mas o núcleo duro do financismo não se deixou abalar e nem mesmo sofreu nenhuma alteração em sua essência. Apenas recolheu um pouco a guarda e ficou na fila de espera, esperando pelo momento do retorno triunfal. Manteve seus cães de ataque mais raivosos rosnando abertamente contra “tudo o que está aí”, na expectativa da oportunidade para desbancar de vez com toda e qualquer aventura que abrisse espaço para questionar os pilares de seu modelo de sustentação. Porém, o mais irônico dessa estória toda é que o próprio quartel general das finanças nunca deixou de exercer a hegemonia de fato. Continuaram faturando alto, aprendendo a viver em harmonia e obtendo mundos e fundos dos adversários do passado, agora no comando dos governos.
Tá tudo dominado!
Afinal, como diz a letra do funk que ficou famoso na virada do milênio, “tá dominado, tá tudo dominado”. Tanto é assim que, passados mais de 7 anos da oportunidade da mudança propiciada pela crise que atravessa os continentes, pouco se conseguiu em termos de consolidação de uma pauta de política econômica alternativa. Seja em termos globais, seja em termos de nossa cozinha tupiniquim. A ortodoxia conservadora continua no comando.
No momento atual, espanta-me a reação cada vez mais generalizada a respeito das mudanças tão evidentemente necessárias em nossa política econômica. Uma forma particular de resignação passiva, uma espécie de “remake” do espírito do TINA. E me refiro aqui a pessoas esclarecidas, inclusive muitas que dominam um pouco os instrumentos ao alcance de quem esteja à frente de órgãos governamentais que lidam com economia. Assim como muitos se acomodaram ao reinado do ex-presidente internacional do Citibank à frente de nosso Banco Central, agora outros tampouco se atrevem a enxergar alternativas às propostas do diretor do Bradesco no leme do Ministério da Fazenda.
A questão fica mais evidente quando se discute algum aspecto específico do menu da política econômica. A estratégia desenvolvida pela autoridade monetária, por exemplo, tem se caracterizado pela manutenção da taxa oficial de juros em níveis estratosféricos. E a cada possibilidade de se criar um clima na sociedade e no governo favorável a mudança de rota, vem uma avalanche desmobilizadora com o argumento de que não se pode baixar os juros “na marra”. Curioso esse novo instrumento de retórica.
O Copom e a Selic.
Segundo a institucionalidade vigente, cabe ao Comitê de Política Monetária (COPOM) a definição da SELIC. O colegiado é composto pelos integrantes da diretoria do BC e tem uma periodicidade de reunião a cada 45 dias. São todos ocupantes de cargo de confiança da Presidência da República e sabemos bem que essa proposta de “independência do banco” é conversa prá boi dormir. Inclusive pelo fato de que se não houver essa subordinação às instâncias de governo legitimado pelo voto popular, restará apenas a influência explícita e declarada dos interesses dos representantes do sistema financeiro. O pior dos mundos: independente do governo e dependente dos banqueiros.
Assim, cabe a esse coletivo deliberar a respeito da taxa oficial de juros. O que significaria, então, decidir “na marra”? O uso da expressão com conotação pejorativa reflete, na verdade, a posição de quem considera que o governo não pode se atrever a discordar do pensamento médio do financismo a esse respeito. Esse procedimento, aliás, é encomendado pelo próprio BC em sua pesquisa periódica realizada junto aos dirigentes de instituições financeiras, a famosa Focus. É a partir dessa consulta organizada junto à nata da banca que os jornais terminam por estampar as manchetes do tipo “o mercado pensa”, “o mercado exige”, “o mercado considera”. E ai de quem ousar contradizer o sacrossanto deus da finança!
Ora, quem tem autoridade para dizer que existe um patamar natural ou equilíbrio para a taxa de juros em torno dos atuais 14,25% ao ano? Quando o BC resolveu retomar a trajetória altista há quase um ano atrás e a SELIC saiu dos já elevados 11% e chegou ao nível atual, ninguém reclamou que os juros estivessem sendo elevados “na marra”. Estranha lógica! Quando a autoridade monetária se rende aos reclamos do convescote dos financistas e aumenta a taxa referencial de juros, ela está sendo apenas razoável e obedecendo aos interesses do mercado. Já quando ela decide ouvir outras vozes da sociedade e tenta promover uma redução na SELIC, aí não pode! Nesse caso, o governo estaria querendo baixar os juros “na marra”!
Baixar os juros não é coisa do outro mundo.
Uma consulta ao dicionário Houaiss nos auxilia a decifrar um pouco esse enigma. Ali, o verbete “marra” é identificado como uma pequena enxada (sacho) usada para retirar ervas daninhas e escavar a terra (mondar). Ou ainda, como sinônimo de coragem e disposição. Assim, a expressão “na marra” guarda aí suas origens etimológicas. A evolução linguística levou a que fosse equivalente a realizar algo “à força, a qualquer preço, contra a vontade (de alguém)” ou então “com coragem, brio ou atrevimento”.
Talvez seja mesmo esse o caminho. O governo deve realmente ser tomado pela coragem e pela vontade política de enfrentar esse grupo extremamente reduzido de empresas e pessoas que vêm sistematicamente se beneficiando do rentismo exagerado. O governo deve, sim, usar a política monetária para retirar o mato que prejudica a nação e deve preparar o terreno para o cultivo do desenvolvimento. Esse é o verdadeiro sentido de baixar os juros “na marra”.
Mas o que precisa ficar claro é que tal opção não significa uma atitude irresponsável em termos de condução da política econômica. Afinal, todos os responsáveis pela dimensão monetária espalhados pelo mundo afora estariam sendo irresponsáveis e apenas os nossos ilustres representantes do financismo aqui na “patria brasilis” estariam iluminados para trilhar o caminho abençoado? O FED nos Estados Unidos baixou a taxa deles para entre 0% e 0,25% ao ano. O BC europeu mantém a sua em 0,05% ao ano. Existem muitas outras opções a serem implementadas em substituição a essa insanidade de manter os nossos juros nos níveis atuais.
“Ah, mas o governo já buscou essa via em 2012 e 2013 e deu tudo errado!” A reclamação recorrente faz menção a uma tentativa ocorrida nesse período, quando a SELIC foi sendo reduzida de forma paulatina e chegou a ficar por um bom tempo abaixo de 8% ao ano. Mas as pressões e chantagens do mercado financeiro foram enormes: o governo cedeu e houve a retomada da trajetória altista. E o pelotão de fuzilamento do financismo não perdeu a oportunidade, condenando de forma injusta e oportunista essa importante tentativa, promovendo uma confusão deliberada na opinião pública e associando a redução dos juros com as trapalhadas das pedaladas fiscais. E dá-lhe bordoada na assim chamada “nova matriz econômica”.
No entanto, o fato mais relevante é que não há nem mesmo argumento econômico que sustente a manutenção da SELIC nas alturas. A inflação que vivemos atualmente não é de demanda e os juros não atuam nessa dinâmica. Eles provocam alta de custos para famílias e empresas, com consequências graves para o aprofundamento do quadro recessivo. Provocam também uma enxurrada de recursos especulativos do resto mundo sobre nosso mercado, o que contribuiu, até pouco tempo atrás, para manter nossa taxa de câmbio sobrevalorizada. Por fim, juros altos têm impacto imediato sobre o serviço da dívida pública e provocam uma drenagem de recursos orçamentários para pagamento de juros.
Ao contrário do que afirmam as editorias de economia, não existe consenso algum em nossa sociedade a respeito da necessidade de se manter os juros nesse patamar criminoso. Aliás, muito pelo contrário! Para tanto, bastaria ampliar as consultas a respeito de quais os melhores rumos a adotar. Infelizmente, a única decisão “na marra” que o governo vem tomando há muito tempo é a submissão total frente aos desejos do financismo. Já passou da hora de uma mudança de rota, em busca da trilha do desenvolvimento.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.