10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos

A humanidade, desde os primórdios, buscou estabelecer pactos de convivência como forma de viabilizar sua existência, a despeito de conflitos recorrentes por disputa de espaços. Ao longo dos séculos os conflitos permaneceram em constante movimento de construção de sociedades onde se configuravam dominados e dominadores. Este processo, sem dúvida, beneficiava aqueles que se encontravam na condição de dominadores, e sempre se estabeleceu de acordo com a correlação de forças em cada conjuntura dada.

Por Ana Guedes*

Apesar das sociedades se estruturarem e se desenvolverem dessa forma, os pactos se constituem em uma necessidade para sua própria sobrevivência e reprodução. Acordos foram definidos ao longo da história da humanidade, como na Revolução Francesa e na Guerra Civil Americana, por exemplo.

Já no século XX, quando terminou a segunda Guerra Mundial, em 1945, havia a necessidade da sociedade, no mundo inteiro, se reorganizar em todos os sentidos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 10 de dezembro de 1948, foi construída com a participação de representantes de diversas nações com o objetivo de instituir e resgatar valores humanos que a guerra tinha atingido tão duramente. Busca estabelecer a proteção universal dos direitos humanos. O Brasil é signatário da Declaração, dentre inúmeros outros países.

Apesar de não ter poder de obrigatoriedade, representa um pacto que deveria ser seguido assegurando direitos básicos.

A Declaração, juntamente com o Pacto internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais se constituem na Carta Internacional dos Direitos Humanos. A partir daí, uma série de tratados internacionais de direitos humanos foram, ao longo das décadas seguintes, sendo conquistados. Tratam de questões raciais, mulheres, crianças, deficientes, entre muitos outros temas fundamentais na luta pelos direitos humanos.

No mundo do pós-guerra não demorou um realinhamento de países, de acordo com seus próprios interesses. Veio a guerra fria e o mundo se viu diante de novos desafios.

A Declaração prosseguiu se constituindo como uma referência, mas sua aplicação se dava ou não de acordo com as prioridades e interesses das nações signatárias.

Na América Latina, nas décadas de 60, 70 e 80, a referência da Declaração passou longe dos acontecimentos ocorridos. Golpes de Estado empreendidos por militares em aliança com a burguesia em diversos países do continente, com receio do crescimento da esquerda, articulados e apoiados, principalmente, por governos dos Estados Unidos, se sucederam, sendo instalados regimes ditatoriais que penalizaram milhares de resistentes ao autoritarismo.

O Brasil, país com um histórico de colonização, escravidão e forte oligarquia constituída, já contava com um saldo social de desigualdade profundo. As inúmeras revoltas sociais ocorridas demonstram o quanto este país tem enfrentado desafios para se constituir numa nação que dê respostas aos anseios da sua população.

A ditadura militar de 1964 veio a aprofundar os problemas já existentes. A frágil democracia caiu por terra e os direitos da população foram duramente atingidos. A repressão política, em particular, caracterizou os sequentes governos militares durante 21 anos.

No período ditatorial, aqueles que ousaram resistir sofreram a maior repressão da história do Brasil, com mortes, desaparecimentos, prisões, tortura, exílios e toda a sorte de perseguição política, se instalando o terror em todas as esferas. Os direitos humanos não entraram na pauta do país.

O fim da ditadura militar, com a eleição de Tancredo Neve, foi, principalmente, uma vitória do povo brasileiro. A nação se uniu na luta por Anistia (com a lei de Anistia ainda em 1979), pelas Eleições Diretas e levou a termo a derrocada da ditadura.

A reconstrução da democracia passou a se constituir o maior desafio. A Constituição Cidadã de 1988 representa um marco democrático fundamental.

Passados 31 anos do fim da ditadura militar, muitas conquistas foram alcançadas. Entretanto, as sequelas do período ditatorial somadas às características da formação da nação brasileira e os desafios de um mundo globalizado onde nenhuma nação é uma ilha isolada, levaram a um país de grande complexidade no que se refere aos direitos humanos. Temática ampla e complexa, os direitos humanos são transversais, o que exige atuação junto a muitas áreas do direito.

A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos de Viena em 1993 reafirma a necessidade do apoio internacional aos países menos desenvolvidos e define criação dos Programas Nacionais de Direitos Humanos. O primeiro programa no Brasil foi aprovado em 1995. A partir daí foram sendo atualizados e legitimados pelo sistema de conferências, o que imprime participação da sociedade civil e dos governos, municipal, estadual e federal. A última conferência realizada foi em 2008. Esta conferência foi um marco. Aconteceram discussões de muitos eixos na área dos direitos humanos. O grupo de trabalho do eixo Memória e Verdade, definiu e foi aprovado no plenário da Conferencia Nacional, a criação da Comissão Nacional da Verdade. Sua implantação enfrentou dificuldades pela resistência de militares que foram alinhados com a ditadura e setores de direita. Enfim, passou a funcionar. Apresentou um relatório consistente sobre os crimes da ditadura militar, ocupando grande espaço político no país. Para tanto, contribuiu para o trabalho efetuado, a Comissão de Mortos e Desaparecidos criada pelo governo federal em 1995 e que levantou mais de 400 casos de pessoas mortas ou desaparecidas no período ditatorial. Da mesma forma, o trabalho realizado pela Comissão Nacional da Anistia do Ministério da Justiça desde 2002, subsidiou o trabalho da Comissão da Verdade, com seus mais de 70.000 requerimentos já julgados. E, principalmente, inúmeros depoimentos, levantamentos em arquivos e outras formas de obter informações que mostrasse ao país as atrocidades cometidas, revelasse nomes de torturadores de forma ampla, e as sequelas deixadas por este período nefasto da vida nacional.

A transição democrática tem enfrentado muitos percalços. O acúmulo dos problemas sociais, historicamente existentes, somado às sequelas de repressão política do período da ditadura militar configura uma sociedade sedenta de mudanças. Demandas se apresentam com urgência de serem enfrentadas. Graves problemas na área da segurança pública, educação, saúde e, muitos outros setores, desafiam o poder público e a sociedade civil.

As sociedades remanescentes de regimes autoritários, na reconstrução democrática, exigem medidas de transição. Para tal, o conceito de justiça de transição, ainda novo na linguagem político jurídica, deve ser aplicado. Nesse processo, tem que ser assegurado o direito à memória e à verdade, reconhecimento das responsabilidades do Estado pelos crimes praticados, reparação moral e material e justiça através da punição dos agentes públicos que cometeram crimes durante a ditadura. Neste caso, é preciso rever a Lei da Anistia de 1979, que também anistia estes agentes.

O Brasil avançou na concepção e aplicação de políticas públicas, particularmente, na última década, mas o volume de questões a serem enfrentadas ainda supera as possibilidades.

Neste 10 de dezembro são 67 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. No nosso país a democracia, o que é fundamental para se avançar na conquista de direitos, tem sido objeto de muitas batalhas para o seu alcance. Convivemos com uma acirrada luta entre democratas e conservadores. Nas várias esferas da vida nacional, este embate tem caracterizado o momento político atual. A democracia interessa aos mais amplos setores sociais, particularmente àqueles que não têm acesso aos benefícios necessários a uma vida digna o que representa a maioria pobre. É preciso, portanto, a união de todas as organizações e forças existentes no país que compreendem a democracia como um valor, no enfrentamento aos setores retrógrados e na perspectiva da construção de uma sociedade humana e solidária.

*Ana Guedes é diretora do Grupo Tortura Nunca Mais da Bahia, conselheira da Comissão Nacional da Anistia do Ministério da Justiça e membro do Comitê Estadual do PCdoB-Bahia