Chico, artista brasileiro
Pronto, 2015, se você quiser pode acabar! Porque um rio de sentimentos invadiu minha alma nesta noite no cinema ao lado de casa… As palavras e as melodias foram sendo derramadas sobre mim, corpo, alma, e coração. Trouxe retrospectivas de vida a cada frase e a cada canção do filme “Chico, artista brasileiro”. As canções de Chico têm o dom de pinçar memórias da minha vida, como se houvesse uma de fundo musical para cada momento desses.
Por Mazé Leite
Publicado 18/12/2015 18:59
De repente eu era aquelas palavras e aquela voz cantando em som de preto velho explicando que “se a dona se banhou eu não estava lá, por Deus Nosso Senhor, eu não olhei sinhá!” O canto vinha dos recantos e dos mocambos mais escondidos desse meu país, vinha de há séculos, vinha da senzala onde se maltratavam os pretos, vem das favelas onde ainda se esmaga um povo inteiro, onde os atabaques choram grossas lágrimas cujos sons às vezes ninguém ouve: “Pra que me pôr no tronco? Pra que me aleijar? Eu juro a vosmecê que nunca vi Sinhá! Por que me faz tão mal com olhos tão azuis? Me benzo com o sinal da santa cruz!” Ah, meu Preto Velho, que só tinha chegado no açude atrás da sabiá…
Sabiá. Palavra das coisas da minha vida, canto que embalava minha adolescência triste, quando a vida pesava como um fardo e sem nem eu saber por quê… Nem onde ficava esse lugar para onde a minha alma queria ir embora: “Vou voltar, sei que ainda vou voltar para o meu lugar, foi lá e é ainda lá que eu hei de ouvir cantar uma sabiá”… Era a minha Caruaru que tinha ficado pra trás, de quem eu tinha me perdido pra sempre? De onde até hoje me sinto afastada, exilada, enquanto persigo a vida nesta metrópole dura onde ainda faço “tantos planos de me enganar como fiz enganos de me encontrar como fiz estradas de me perder fiz de tudo e nada de te esquecer!”
Nestas vitrines da cidade imensa, por onde caminho meus pés cansados de procurar meus próprios fantasmas, as ilusões que crio, os sonhos que sonho, a vida que era pra ser outra – ou outras -, atravessando estas ruas augustas, estas calles onde tantas outras pernas passam por mim e onde a voz parece me perseguir dizendo que tinha me avisado “que a cidade era um vão: – Dá tua mão! – Olha pra mim! – Não faz assim! – Não vai lá não!”. Consolação e angélicas ruas dos meus maiores sonhos, os sonhos de uma busca pelo sentido maior de eu existir, fazendo algo de poesia, que floresça não com palavras, mas com pinceis, onde procuro pintar um não sei quê que ainda está dentro de mim e precisa ser arrancado ahhhhhhhhhhhh… Tanta coisa dentro de mim precisa ser arrancada!…
As ondas vêm e a gente pensa que elas se acabaram, mas elas voltam! As ondas do mar brincam na beira da praia de tomar impulso de parecer que deslizam que se espalham que se dissolvem na água para depois ressurgirem ainda mais gigantes, ainda mais tesas, com mais energia sobre os amantes que se banham com “as bocas salgadas pela maresia, as costas lanhadas pela tempestade naquela cidade”. Distante do mar estou. Estou longe das praias onde de noite eu gostava de mergulhar nua, sentir o prazer em meu corpo dos movimentos salgados das ondas, sensação maior de liberdade que eu podia ter! Ávida de mar! Mas as ondas da vida me empurraram para muito longe e tudo isso parece que ficou no sonho, na imaginação profunda da minha história, que ainda gosta de cantar em noite alta aquelas canções onde se contava de alguém que podia ser eu mesma e diz que “hoje é sabido todo mundo conta que uma andava tonta grávida de lua e outra andava nua ávida de mar. E foram virando peixes, virando conchas, virando seixos, virando areia prateada areia com lua cheia e à beira-mar”…
Num tempo em que quase nada eu tinha de meu a vida era passar as noites em longas conversas com meus amigos sobre os sentidos de tudo. “No palco, na praça, no circo, num banco de jardim, correndo no escuro”, pichando alguns muros, gritando em tintas para uma ditadura cair; era eu a que era feliz em possuir só o mar, o sol, a lua, as canções que eu e meus amigos cantávamos em voz alta por aquelas ruas estreitas com seus paralelepípedos que pareciam guardar aquelas casas velhas, adormecidas, cheias de tempo, indo em direção ao mar, à ponte que ligava pedaços de vida. Como saltimbancos, mendigos, malandros, moleques “poeta, palhaço, pirata, corisco, errante judeu, cantando, dormindo na estrada, no nada, no nada e esse mundo é todo meu!”
Mas pelo amor de Deus!….
“Pelo amor de Deus, não vê que isso é pecado desprezar quem lhe quer bem? Não vê que Deus até fica zangado vendo alguém abandonado, pelo amor de Deus? Ao Nosso Senhor pergunte se Ele produziu nas trevas o esplendor, se tudo foi criado – o macho, a fêmea, o bicho, a flor, criado pra adorar o Criador? E se o Criador inventou a criatura, por favor! Se do barro fez alguém com tanto amor para amar Nosso Senhor? Não, Nosso Senhor não há de ter lançado em movimento terra e céu, estrelas percorrendo o firmamento em carrossel pra circular em torno ao Criador! Ou será que o deus que criou nosso desejo é tão cruel? Mostra os vales onde jorra o leite e o mel, e esses vales são… de Deus? Pelo amor de Deus, não vê que isso é pecado, desprezar quem lhe quer bem? Não vê que Deus até fica zangado vendo alguém abandonado? Pelo amor de Deus!”
“Consta nos astros, nos signos, nos búzios”, não consta em lugar nenhum! Nem adianta os autos, as bulas, os dogmas, os tratados, as teses, os dados oficiais, o destino, a ciência, os astros, os autos, os signos, os anúncios, as ciganas, os projetos, os profetas, as sinopses, os espelhos, os conselhos, os evangelhos, os orixás, as pautas, as novelas, os muros, os cartazes, os mapas, os lábios, os lápis, os Ovnis, o Pravda, a vodca… O certo é que continuo aqui, eu.
No dia a dia praticando o meu ofício, carregando os fardos que me cabem, arrancando leite das pedras, matando um leão todo dia, fazendo das tripas coração… Tudo isto fez o sentido todo, completo, nesta noite em que ouvi: “Quanto mais eu sei sobre o meu ofício, mais ele vai ficando difícil! Porque eu não posso parar nas coisas que já fiz, que já aprendi. Eu quero aprender o que eu ainda não sei”. EU QUERO APRENDER O QUE AINDA NÃO SEI, eu quero aprender o que ainda não sei, eu quero aprender o que ainda não sei! Eu quero!
Neste meu rio de vida, de ladeiras, nesta encruzilhada onde “cada ribanceira é uma nação”. Nesta terceira margem, sigo em frente à minha maneira aguardando a “noite da grande Fogueira desvairada”. À minha maneira, os meus argumentos carregam “carradas de razão”! São Sebastião crivado, abri minha visão das coisas antes do trem estacionar naquela derradeira estação!
Mas antes, deixe eu baldear naquelas cidades, e um pouco mais ainda nesta! Me deixe um pouco mais ter voz ativa, em minha palheta de cores mandar, antes que aquela roda-viva-carregue-meu-destino-pra-lá… Onda se formando na beira da praia… Na beira da praia estarei daqui a poucos dias naquela cidade-ilha ouvindo as batidas do meu coração que nasceu em outro canto e por isso seu ritmo é em redondilhas de sete sílabas poéticas dos cordéis de meu Caruaru. Como estas aqui:
“O meu pai era paulista
Meu avô, pernambucano
O meu bisavô, mineiro
Meu tataravô, baiano
Meu maestro soberano
Foi Antonio Brasileiro.
Foi Antonio Brasileiro
Quem soprou esta toada
Que cobri de redondilhas
Pra seguir minha jornada
E com a vista enevoada
Ver o inferno e maravilhas.
Nessas tortuosas trilhas
A viola me redime
Creia, ilustre cavalheiro
Contra fel, moléstia, crime
Use Dorival Caymmi
Vá de Jackson do Pandeiro!
Vi cidades, vi dinheiro
Bandoleiros, vi hospícios
Moças feito passarinho
Avoando de edifícios
Fume Ari, cheire Vinícius
Beba Nelson Cavaquinho!
Para um coração mesquinho
Contra a solidão agreste
Luiz Gonzaga é tiro certo
Pixinguinha é inconteste
Tome Noel, Cartola, Orestes
Caetano e João Gilberto…
Viva Erasmo, Ben, Roberto
Gil e Hermeto, palmas para
Todos os instrumentistas
Salve Edu, Bituca, Nara
Gal, Bethania, Rita, Clara
Evoé, jovens à vista!
O meu pai era paulista
Meu avô, pernambucano
O meu bisavô, mineiro
Meu tataravô, baiano
Vou na estrada há muitos anos
Sou um artista brasileiro!”
Evoé, Chico Buarque de Holanda!