Amor em tempos de chumbo

Sala de estar do sexagenário casal Miguel e Lúcia, residentes no apartamento 502 do número 1.077 na avenida 17 de Agosto, Recife. Ele, um professor de sociologia. Ela, curadora de arte popular, estão casados há 43 anos. Mas Miguel e Lúcia não existem. Na verdade estão em gestação. 

Filmagens de Amores de Chumbo

Encarnados respectivamente pelo ator e diretor de teatro Aderbal Freire Filho e pela atriz Augusta Ferraz, Miguel e Lúcia dividem o protagonismo com Maria Eugênia (a atriz Juliana Carneiro da Cunha) e formam um triângulo amoroso em “Amores de Chumbo”, primeiro longa dirigido pela pernambucana Tuca Siqueira.

Só pelo tema consistente e incomum no atual cinema brasileiro – um triângulo amoroso entre sexagenários! -, o projeto de Tuca, com roteiro co-assinado pela carioca Renata Mizhari, já chama a atenção. A densidade ganha ainda mais corpo quando a realizadora contextualiza o universo desse trio.

Miguel, junto ao amigo Bosco (Cláudio Ferrário, num personagem longe da comicidade), foram militantes contra a Ditadura Militar na juventude. Ambos presos políticos, saíram da cadeia em 1979 com a Anistia. Já Maria Eugênia, a então namorada de Miguel, depois de passar quatro meses sendo torturada diariamente no DOI-CODI, se auto-exilou na França, em Toulouse, por 40 anos. “Mas não há no filme nenhuma sequência de flashback“ , avisa Tuca.

O filme está interessado no reencontro de Miguel com Maria Eugênia, que volta ao Recife e não reconhece a cidade. E também em como isso afeta a vida da esposa Lúcia e de seu filho Ernesto, que tem o apelido de Chê (Rodrigo Riszla, de “Amigos de Risco”). A repressão militar, tão distante de Tuca Siqueira, na verdade era bastante presente em sua família, tendo sido os pais da cineasta, ele próprios, militantes políticos. “Lembro de ter ido no Cineteatro do Parque ver com os meus pais ‘Que Bom Te Ver Viva’ [1989], de Lúcia Murat, quando tinha uns 14 anos. Durante a projeção, olhei para minha mãe e ela chorava muito”, recordou.

Para encarar o desafio de dirigir tal tema com um trio de peso como Aderbal, Juliana e Augusta, Tuca passou um ano estudando. “Houve uma hora no set de filmagem que pensei comigo, tô dirigindo um diretor!”, disse, referindo-se a Aderbal, com seus mais de 40 anos de teatro. Pela sintonia da equipe, o esforço valeu a pena. “Aceitei o papel porque, além de querer retomar a chama da atuação, a Ditadura é um assunto caro para mim. Vivi a repressão quando ainda morava no Ceará, até 1969. Além do mais o roteiro tem uma combinação entre amor e política que me interessa muito”, comentou Aderbal.

Já Juliana, também residindo há quase 40 anos na França, disse ter adorado a possibilidade de viver uma enamorada no cinema. “Sempre me convidaram para interpretar a mãe, depois a avó, e sempre com um peso dramático muito grande”, comentou a atriz de “Lavoura Arcaica” (2001). Para a pernambucana Augusta Ferraz, também com histórico mais vinculado ao teatro, a atual experiência com o cinema foi reveladora.

“Observar Juliana e Aderbal no set, conversando sobre as sutilezas da atuação para a câmera foi algo novo. E a concentração e o profissionalismo da equipe técnica e artística da produção era impressionante. Lamento que o setor de cênicas do Estado não tenha uma sintonia como a que vi”, registrou.

Por Luiz Joaquim, na Folha de Pernambuco