França destitui nacionalidade e satisfaz extrema direita

Contra todas as expectativas, e contra toda a história e os valores dos republicanos de esquerda, o governo francês decidiu permitir a destituição de nacionalidade dos cidadãos binacionais nascidos na França, criando assim duas categorias de cidadãos com direitos distintos. A direita e a extrema direita aplaudem, a esquerda está sufocada. 

Por Adrien Rouchaleo, no L´Humanité

Marcha da extrema direita em Paris - Internet

São numerosos aqueles que, na esquerda, terão sentido o anúncio do primeiro-ministro na quarta-feira (23) como um violento soco no fígado. Assim, a possibilidade de destituição de nacionalidade será finalmente incorporada à Constituição, atingindo o conjunto dos franceses que têm a (má) sorte de possuir duas nacionalidades.

Quatro milhões de franceses (e somente eles) poderão no futuro ser objeto de uma sanção específica à sua condição. O chefe de Estado e o governo socialista decidiram assim. “A eficácia, aqui – e todo o mundo compreenderá – não é o primeiro desafio”, explicou o primeiro-ministro Manuel Valls. “É uma medida com caráter altamente simbólico”. Sim, mas de quê? Em todo caso, politicamente, o símbolo é absolutamente desastroso: não somente, porque o último a querer incluir na lei uma extensão da destituição de nacionalidade foi Nicolas Sarkozy em 2010, para os binacionais que adquiriram depois de seu nascimento a nacionalidade francesa (provocando então um clamor de toda a esquerda, inclusive de Valls); mas também porque, antes disso, ninguém ousou tocar na nacionalidade desde os dramas da Segunda Guerra Mundial, quando o ministro da Justiça do governo de Vichy, Raphaël Alibert, declarou que “os estrangeiros não devem esquecer que a qualidade de ser francês é um mérito”. Somente a Frente Nacional ainda ousava atacar a binacionalidade.

Até o encerramento da reunião do Conselho de Ministros, todo mundo esperava que a destituição de nacionalidade fosse excluída da proposta de lei de revisão constitucional. Quase todo mundo achava que o pedido de parecer feito pelo Governo ao Conselho de Estado, era uma manobra por parte do executivo esperando um parecer negativo. O governo poderia continuar jactando-se de “tomar todas as propostas”, de onde quer que viessem (como o chefe de Estado prometeu na reunião do Congresso em Versalhes) e concentrar apenas no Conselho de Estado a responsabilidade de recusar a inclusão da medida no texto. A escolha pela destituição de nacionalidade parecia tanto mais improvável que a ministra da Justiça, Christiane Taubira, anunciou um dia antes numa entrevista de rádio na Argélia que “o projeto de revisão constitucional que será apresentado no Conselho de Ministros não contém esse dispositivo”, acrescentando que “por [sua] parte, [ela estava] persuadida de que é uma decisão que não pode ter eficácia na luta contra o terrorismo”.

Na quarta-feira (23) de manhã a ministra da Justiça teve que engolir um sapo. Manuel Valls, com quem seus desacordos de fundo são antigos e conhecidos, aproveitou-se da ocasião para lhe atribuir a defesa incondicional de um texto no qual ela afirmou que não crê: Christiane Taubira bebeu o copo até a última gota: “A primeira palavra foi do presidente da República. Ela foi pronunciada no Congresso em Versalhes. A última palavra foi do presidente da República, e esta foi pronunciada nesta manhã no Conselho de Ministros. Ponto final”.

Na esquerda, mal-estar profundo e consternação

A direita, que se alegra com o anúncio, e ao mesmo tempo se sente incomodada ao ver que o governo joga abertamente em seu campo, aproveita para pedir a cabeça da ministra da Justiça, com uma blitz de tweets bastante articulada: “Um enorme desmentido para Taubira e uma humilhação pública”, disse Éric Woerth ; “Christiane Taubira que combate esta medida deve deixar o governo”, segundo Éric Ciotti ; “Mas como ela pode continuar no governo?” – interroga-se Thierry Mariani, quando seu colega Olivier Marleix julga que “a França não pode estar ‘em guerra contra o terrorismo’ e ter um ministro da Justiça tão pouco combativo”. (Uso do masculino do autor da frase).

Os votos dos “Republicanos” deverão, portanto, finalmente, ser favoráveis à revisão constitucional, quando o Congresso voltar a se reunir em Versalhes no começo do ano. Os da UDI (União dos Democratas e Independentes) também não faltarão, já que seu presidente Jean-Christophe Lagarde aderiu à medida. Entre senadores e deputados, excluindo as abstenções, esses dois partidos já representam 407 parlamentares sobre os 555 necessários ao governo para obter a maioria dos três quintos necessários a uma revisão constitucional. A estes devem-se acrescentar os dois senadores e três deputados da Frente Nacional.

Efetivamente, a extrema direita também comemora: “O governo prefere Marina a Christiane. Mais uma vitória ideológica”! – alegra-se Florian Philippot, quando da parte de Marine Le Pen o sentimento de vitória é ainda mais aberto: “Destituição da nacionalidade: primeiro efeito dos 6,8 milhões de votos para a Frente Nacional nas eleições regionais” – escreveu ela no Twitter.

Na esquerda, ao contrário, o mal-estar é profundo. Claro, Valls e Hollande receberam o apoio dos seus habituais e incondicionais caçadores de postos, como Jean-Vincent Placé, ou de eternos seguidistas, como o chefe dos deputados socialistas Bruno Le Roux (que se dizia na véspera oposto à destituição de nacionalidade). Mas muitos estão consternados. “A destituição de nacionalidade atenta contra o princípio da igualdade de todos os franceses, não luta em absoluto contra a doutrinação e o terrorismo, lança suspeição sobre alguns compatriotas e leva para outros países a responsabilidade de assumir os ‘fracassos’ franceses”, opina por exemplo a deputada socialista Pouria Amirshahi. Para seu colega comunista Jean-Jacques Candelier, “além do fato de que a ameaça de destituição de nacionalidade não dissuadiria um jihadista fanático de agir, esta medida proveniente do corpo ideológico da extrema direita é perigosa pois divide e hierarquiza os franceses. Este amálgama vergonhoso entre terrorismo e binacionalidade faz reinar um ar de suspeição malsã sobre alguns de nossos compatriotas”. Por sua parte, os ecologistas apelam aos parlamentares “a rejeitar em consciência este insuportável atentado aos princípios da igualdade e da fraternidade”.

Uma “linha vermelha” foi transposta

É incontestavelmente uma enorme ruptura que o poder executivo acaba de operar, mesmo que as veleidades de se aproximar de uma parte da direita e de se separar da esquerda histórica sejam há muito tempo visíveis. Jamais um governo socialista chamou a si a responsabilidade de adotar uma medida emblemática da Frente Nacional. Uma “linha vermelha” foi transposta, segundo as palavras de vários deputados socialistas. Viva! Ainda resta alguém no lado bom da linha.