Sylvia Porto Alegre: Chuva de prata

Sylvia Porto Alegre narra, com o olhar da criança que era em 1954, as comemorações dos 400 anos da cidade de São Paulo.

chuva de prata são paulo 1954

Sabe aqueles episódios da infância que sempre voltam à nossa lembrança? A comemoração do IV Centenário de São Paulo é um desses momentos inesquecíveis para mim.

Naquele ano de 1954 o aniversário da cidade não foi festejado no dia 25 de janeiro e sim no feriado do nove de julho. Ninguém se deu ao trabalho de estranhar. A festa durou três dias, durante os quais a turma do Largo do Arouche, onde eu morava, ficou bem maluquete com a programação, sendo que alguns aproveitaram a oportunidade para não voltar ao normal tão cedo.

"Também, uma cidade que faz 400 anos em janeiro e comemora em julho só pode deixar a gente meio bocó, de miolo mole!" Foi o que disse a Vivien Mahr, minha vizinha e melhor amiga.

No primeiro dia fomos conhecer o novo Parque do Ibirapuera, ainda não inaugurado, mas já aberto para visitas. Caía uma garoa fina sobre os enormes pavilhões em construção e, ao atravessar o terreno ainda em obras, enfiamos os pés na lama até as canelas, de modo que nosso aspecto geral ficou comprometido logo de saída.

Os dois lagos no centro do parque era o lugar mais bonito, com ancoradouros de onde iam sair os barcos de passeio, daqueles de pedalinhos. Trilhas internas, cheias de curvas e cruzamentos foram levando a gente em direção ao bosque de eucaliptos plantado ali não faz muitos anos. Pensar que antigamente tudo isso era um enorme terreno alagadiço, um pântano cheio de mistérios, que ninguém pisava. Depois de muito correr, chegamos à avenida que atravessa o parque, encurtando o caminho que vai dar em Santo Amaro, e dali voltamos de ônibus para o centro da cidade. Uma farra!

E nem tínhamos chegado ao ponto alto da festa: a chuva de prata que caiu sobre a cidade no dia seguinte, uma apoteose completa. O pai do Ricardinho, que trabalhava no Banco Nacional Imobiliário, conseguiu autorização para a garotada assistir ao espetáculo no Sindicato dos Bancários, no edifício Martinelli.

Num fim de tarde friorento de inverno, a turma se reuniu no portão do nosso prédio, na esquina da Rua Rego Freitas com o Largo do Arouche. Éramos uns dez, incluindo minha irmã Celinha, a Vivien, os meninos da Rua do Arouche, mais o Branco-Que-Nem-Farinha e o Saco-Sem-Fundo, que trabalhavam na padaria Nosso Pão, em frente ao prédio.

Às cinco horas a caravana partiu para a Praça da República, fomos seguindo a multidão pela Av. São João, descemos a ladeira até o Anhangabaú e entramos num sufoco no Martinelli, “o edifício mais alto da América Latina”, com seus 30 andares recortados no céu que escurecia. No meio do empurra-empurra pulamos do elevador no sétimo andar, adentrando o famoso sindicato. Um monte de cotoveladas e chutes depois, com a massa humana disputando a tapas as janelas, consegui enfiar a cabeça numa delas bem a tempo de começar o espetáculo.

Holofotes do Exército riscavam as nuvens em todas as direções com infinitos raios de luz. Três aviões C-4 sobrevoavam o espaço em vôos rasantes, despejando milhões de pequenos triângulos de alumínio rebrilhante sobre a multidão apinhada nas ruas. Uma imensa chuva de prata rodopiava pelo ar, entrava pelas janelas dos edifícios, espalhava-se nas calçadas, subindo e descendo carregada pelo vento, os pedacinhos de luz transformados em guerra de confetes de um carnaval encantado.

Naquela noite, adormeci exausta vendo o pântano virar floresta colorida e cobrir a Escola de Balé, embaixo do Viaduto do Chá, onde eu estudava. As altas palmeiras dos jardins iluminados, o Teatro Municipal, a Praça Ramos de Azevedo, tudo girava. O vale do Anhangabaú, com a Praça dos Correios numa ponta e a Praça da Bandeira na outra, formava uma estranha constelação de poeira estelar, espalhando-se em ondas de frio e calor sobre as águas mansas dos lagos do Ibirapuera.

Acordei com o barulho matinal dos bondes lotados correndo nos trilhos lá embaixo. Do sétimo andar do edifício, fiquei olhando as pessoas passando apressadas, desviando dos carros para chegar ao trabalho. Tudo continuava no lugar de sempre, na cidade que eu conhecia como a palma da minha mão, desde que aprendi a dar os primeiros passos e saia andando a pé com mamãe. “Anda, assim não vai ficar velha nunca”, dizia a Dona Paulina, me arrastando pela mão.

Guardei numa caixa as estrelinhas que consegui pegar, com as palavras prata wolff inscritas no centro. Era uma marca de talheres fabricados pelo Baby Pignatari, um empresário playboy, frequentador assíduo das colunas sociais da época. Que decepção, todo aquele regabofe da chuva de prata então não passava de pura propaganda! Capitalistas malditos, bufou o Ricardinho.

Pelo sim, pelo não, enfiei a caixinha no fundo de uma gaveta. Até hoje, em janeiro, me divirto ao lembrar daquele encantamento. Em pleno verão, ainda posso sentir os pés enlameados e a garoa fria do inverno caindo nas minhas mãos geladas, cheias de triângulos de luz. Coisas de São Paulo…

Sylvia Porto Alegre é antropóloga e professora aposentada da Universidade Federal do Ceará.