Sem categoria

A poesia de Diego Vinhas

Diego Vinhas é poeta e, apesar da pouca idade, já conta com dois livros publicados: Primeiro as coisas morrem, lançado em 2004 e Nenhum nome onde morar, de 2014. Ambos foram editados pela 7 Letras.

Diego Vinhas - Arquivo pessoal

Além dos livros, Diego colabora com periódicos e revistas impressas e eletrônicas especializadas, entre elas a Zunái. Também já integrou antologias de poesia brasileira contemporânea. Letras Vermelhas traz uma série de poemas enviados com exclusividade pelo poeta ao Vermelho.

Leia na íntegra:

Visita

da mesma matéria
de que são feitos
os domingos
– tédio e vapor em pedra-sabão –
compunha-se a espera
num gesto mais
branco

De um calendário

as coisas, depois, têm o tamanho da bagagem.
cada um sabe o peso das alças, a medida do que
escorre. e comungam, além do instante e das
coordenadas, a dose de um tédio que rumina e
aprende a doer,
depois.
primeiro, as coisas morrem.

Chiaroscuro

talvez sob a noite
calejada de grilos
um
meu filho
talvez
existisse
e, baldio, evitasse uma sílaba
enquanto
pastoreia
o caminho do brinquedo:
um ferrorama
que não carrega vozes
em suas vísceras plásticas
que não atrasa
como os trens do interior
e – alheio aos
olhos de gude –
apenas
cumpre
os trilhos
desta noite
de pânico e
esgrima.

(poemas do livro “Primeiro as Coisas Morrem”)

Xilogravura

no rosto o tropeço
da mão, volver em
contorno por raízes
brancas e dobras (e
esta e outras tardes
costuradas), ela deita
por deitar, ela toca
a pele, erosão enquan
to senha, dedos em
passeio no que seria
agrimensura da cavei-
ra a pulsar sob, ou –
“o tempo é barroco”
– quase artesania, um
talho ao que lê, sem
urgência ou espelho,
o rosto não em flor

Riscas de giz

para lá dos vidros
o céu de quase seis,
um buquê rosáceo
de nuvens e vômito

(seguir: sertão-praia
a volta para casa
o caminho de rato)

antes do sinal
relance de construção
(carcaça de sáurio)
e a sirene, os restos
do almoço nu
nas marmitas
alheios permanecerão
até que tornem a vazar
em algum outro
parágrafo

o qual já não dirá
do paletó que desata braços
sem contágio do cansaço

da rotação
do dia

do corpo
que se queria
espectro

Instalação

matéria orgânica, ganchos
inox, técnica mista, 125 cm
x 45 cm., 2007. os números

talhados em pincel atômico
azul sobre as superfícies ver-
melhas (que migram para

roxo ao passar dos dias) a
um só tempo distinguem
e anulam as peças dispostas

de lado, sublinhando o viés
passadista, o estatuto do pre-
cário que acompanha objetos

seriados. a crítica aponta um
certo desgaste das possíveis
metáforas, i.e, crueza, consu-

mo, interioridade – o mesmo
valendo para a solução formal,
já que não deixa de ser um

ready-made. mas a leitura do
artista convidado fixou o tom
de celebração da finitude, além

de problematizar – uma vez
mais – não apenas as idéias de
sublimação pela arte, mas a

própria idéia de “obra” (apud
Warhol), pela sutil referência
a um conhecido eufemismo

(açougue = boutique de carne),
e que tangencia mais uma
questão atual: the thine boundaries

between art and fashion, em espe-
cial no vidro (vitrine?) que isola
público e pedaços suspensos por

correntes, mas que não impede
(outro ponto forte), entre ambos
mundos, o livre trânsito de moscas

Benfica

das guerras que sempre respiram
em algum lugar do mundo,
pousa aqui este
atrito
contra a tarde pronta para
esmurrar meu abraço
na lembrança de você dizendo caminhar
por uma cidade
desconhecida é tomar a vida
de alguém,
emprestada,
contra a luz (e seu monólogo,
esta milonga), esta
bela infelicidade a jogar
ligue-os-pontos
com cumeeiras, árvores
e sombras do bairro
unidas sem voz
como em uma
língua
de estátuas

Ponto cego

ali, não há
células sensíveis (bastonetes)
e, portanto, qualquer
imagem que se forme neste ponto
não será visível. salmo 23:.
miséria é miséria/ em
qualquer canto. a autópsia
deve esperar pelo menos
seis horas, quando o corpo manifesta
os primeiros sinais
abióticos. homo sacer.
napalm, zyklon-b, inseticida.
o senhor é. há mais ratos
que pessoas. os conceitos de humano
ou horror apegam-se a valores
historicamente mutáveis, aí
a (necessária) dose de arbítrio.
essa paisagem, esse
hálito: tudo
estrangulamento. e interrupção.
ali, o retrovisor não capta a
ultrapassagem,
o que catalisa o risco
de colisão. meu pastor. a
boot stamping on an human face
forever.a palavra miséria não
esgota. nada me.

(poemas do livro “Nenhum Nome Onde Morar”)

Minha sombra e eu

1. tropeçamos muito – isso
não é engraçado.

2. gostaríamos de menos luz
ou nenhuma:
ela também precisa dormir.

3. desconfiamos de romances
de formação ou do fim
da História, mas estamos
esgotados
demais para debater.

4. adoramos, sem razão
aparente,
bancas de revistas
padarias
aeroportos.

5. ouvimos nossa tradução
simultânea
mesmo que entre o
vão das vozes algo
escape para nunca
mais.

6. preferíamos afastar a
intimidade forçada (a
ela incomoda que
meus gestos sejam
sempre spoilers
dos seus).

7. continuamos sós.

8. também não sabemos
bem
o que fazer
com os nossos mortos.

(poema inédito)