A morte contínua e sem luto dos palestinos enterrados na ocupação

Em novembro de 2015, Rasha Oweissi, de 24 anos, foi morta por soldados israelenses em um posto de controle militar em Qalqiliya, na Palestina ocupada. A cidade, quase completamente cercada pelo muro israelense, foi palco de uma execução, mas o corpo de Rasha, que apareceu na mídia internacional, ficou mais de um mês detido. Este é o caso, atualmente, de mais de 260 corpos palestinos. Esta é a necropolítica da ocupação.

Por Moara Crivelente*

Palestina - Reuters

Inúmeras famílias na Palestina ocupada denunciam reiteradamente a apreensão dos corpos de seus filhos e filhas, irmãos e irmãs, tios, pais e maridos, principalmente ao serem mortos pelos soldados israelenses ou em circunstâncias controversas. Rasha, por exemplo, foi acusada de portar uma faca e ameaçar a vida dos soldados no posto de controle militar que sempre ocupou a sua vida.

Segundo notícias da Palestina, que divulgam uma carta de suicídio, Rasha sofria de depressão e sabia que seria morta se exibisse uma faca. Ela não precisou ameaçar ninguém ou mesmo se aproximar, de acordo com testemunhas no local. Seu corpo foi alvejado e deixado para sangrar até a morte. Sua família, entretanto, teve de esperar mais de um mês até recebê-lo de volta.

Em outubro de 2015, o gabinete de segurança do governo israelense anunciou oficialmente uma prática já recorrente: os corpos de palestinos alvejados durante a suspeita de ataques contra civis ou soldados israelenses não serão devolvidos às famílias. O pretexto, então, foi o de evitar que os funerais – em tempos proibidos ou de participação limitada – fossem politizados para a “incitação” à violência, ou o de “dissuadir” próximos ataques.

Falando ao portal Mondoweiss, um homem dizia ter esperança de que seu filho ainda estivesse vivo, mesmo após ter visto um vídeo em que ele sangrava, deitado no chão: “Ele está se mexendo, mas eu não sei se ele morreu”.

É nesta toada e na prática estabelecida em Israel de “punição coletiva” – um crime de guerra, aliás – que os corpos de inúmeros palestinos são retidos após as suas mortes nas mãos das forças israelenses. Esta é, para a advogada palestina Budour Hassan, num artigo recente para a revista eletrônica Roar, a “necropolítica da ocupação”. É a política do governo e do Exército de Israel de negar às famílias palestinas o luto e a verdade.

Há casos esdrúxulos como o de Raoufa Khattab, que ainda em 2015 esperava pelo corpo do seu filho, Abd al-Rahman, morto em 1979 – sim, há 36 anos. Seu corpo deve estar enterrado no “cemitério dos números”, que fica em uma “zona militar fechada”, como declarada pelo Exército de Israel. Ali, nomes, planos e também revolta são transformados em meros números, que marcam as covas daqueles cujo retorno é esperado.

Negar o luto como contrainsurgência

A medida anunciada pelo gabinete de segurança é apresentada como “dissuasória” de futuros “ataques palestinos”. Mas é também uma forma de acumular “moedas de troca” para futuras negociações com os líderes ou grupos da resistência palestina.

Em 2003, escreve Hanadi Qawasimi, o governo israelense admitiu a existência de dois locais deste gênero. Entretanto, em 2013, quando vários corpos foram devolvidos, ficou claro que havia ao menos cinco “cemitérios de números”. Entre eles, um ficava nos territórios sírios ocupados por Israel – as colinas de Golã – onde estiveram enterrados também combatentes libaneses do Hezbollah.

Em 2014, a disputa por estimativas era a seguinte: Israel admitia ter sob o seu controle 119 corpos, enquanto o Centro de Jerusalém para Assistência Legal e Direitos Humanos (JLAC) reivindicava 262 filhos, filhas, irmãos, pais e maridos cujas famílias esperam pelo retorno. A campanha conseguiu recuperar 100 corpos de palestinos ativos na segunda intifada (o levante do início dos anos 2000) e até na década de 1970.

Funeral de cinco palestinos mortos pelas forças israelenses em outubro de 2015
(todos menores de 18 anos), em Hebron. Foto: Maan.

Assim como os palestinos vivos, o aparato “securitário” de Israel retrata os mortos como “terroristas” e, assim, não dignos de tratamento legal garantido pelas quatro Convenções de Genebra – fontes do Direito Internacional Humanitário que Israel ratificou em 1952 – como o próprio tratamento decente ou retorno dos corpos. Há casos em que os corpos são enterrados em terrenos arenosos, acabando por ficar expostos, ou cujas covas não são marcadas sequer por números, tornando difícil a identificação. Há ainda denúncias de que a prática tenciona dificultar a investigação das circunstâncias da morte, ou mesmo a coleta de órgãos.

Desde outubro de 2015, quando a intensidade da violência na Palestina ocupada escalou novamente, mais de 160 palestinos, de acordo com a organização palestina Al-Haq, e 20 israelenses, de acordo com a mídia local, já foram mortos; cerca de 50 corpos palestinos ficaram retidos. Suas revoltas contra a ocupação não morrem com eles.

No início deste mês, 14 corpos de palestinos de Hebron foram devolvidos sob a condição de serem enterrados imediatamente. Quando devolvem corpos aos familiares, as autoridades israelenses elencam condições sobre o período, lugar e número de pessoas a participar nos funerais, assim como o pagamento de multas que rondam os R$ 20 mil, ou até a premissa de que não serão realizadas autópsias.

A importância dos mártires na sociedade palestina, assim como a do luto e a do funeral, de acordo com o advogado Haytham Khatib, citado ainda em 2013 pelo Counterpunch, é levada em conta pelas autoridades israelenses, que vêm neste simbolismo mais um terreno de “punição coletiva”.

Atualizada às 20h17 para corrigir o número de mortos palestinos desde outubro de 2015.