Intrépido jornalista que entrevistou “Felipão” sofre nova humilhação

Em artigo intitulado “Arbítrio para todos”, um professor da USP estraçalha Mario Sergio Conti, veterano jornalista que publicou uma falsa entrevista com Felipão na última Copa do Mundo. Aliás, antes de passarmos ao texto do professor Floriano, vamos recordar, para quem não conhece ou não lembra, desta história da falsa entrevista. “Felipão” estava viajando em voo comercial, ao lado de “Neymar”. Sergio Conti, por coincidência, estava lá, vigilante e atento. 

Mico

O apurado faro jornalístico de Conti – que hoje é colunista dos jornais Folha de S. Paulo e O Globo e apresentador do programa Diálogos (Globonews) – não desconfiou do fato de o técnico da seleção, faltando apenas cinco dias para a estreia do Brasil na Copa do Mundo, estar tranquilamente viajando ao lado do maior ídolo do escrete nacional, sem seguranças ou qualquer aparato, em um singelo voo de carreira da ponte-aérea São Paulo-Rio. Tão grande incongruência faria até uma criança de três anos ter suas dúvidas. Mas Mario Sergio Conti foi em frente e fez uma “entrevista inédita” com o “técnico” canarinho, que foi publicada na Folha e reproduzida por O Globo, o que revela o nível do jornalismo pátrio, pois, é claro que o “Felipão” e o “Neymar” eram sósias que viajavam para promoções comerciais durante a Copa. Revelado o mico gigantesco, que repercutiu em todo o mundo, a Folha e O Globo tiraram da internet a hilariante matéria e pediram desculpas aos leitores. Mas a versão impressa não tem como ser apagada. O texto começava assim: “Neymar e Luiz Felipe Scolari foram os últimos passageiros a embarcar no avião, às 17h30 de ontem. Como o voo da ponte-aérea, do Rio pra São Paulo, estava lotado, ambos se espremeram em poltronas entre passageiros, Felipão na 25E e Neymar na fileira da frente. ‘Vê se dorme, moleque’, disse o técnico ao jogador (…)”, e assim segue o relato histórico de Conti, feito no dia 18 de junho de 2014 e publicado no dia seguinte com o título “O principal problema do Brasil é a zaga, diz Felipão”.

A coerência de Conti

O bicheiro carioca Castor de Andrade dizia que em política sempre foi coerente: estava com o governo: “não tenho culpa se de vez em quando o governo muda”, completava. Conti é um pouco assim, com uma pequena diferença: ele é um fiel defensor da linha editorial dos patrões, qualquer que seja ela. Por exemplo, Conti agora está apaixonado pela Operação Lava Jato, mas ao exercer com o costumeiro brilhantismo sua verve a favor do que é conveniente aos “queridos chefinhos”, passou vergonha outra vez, sendo humilhado neste excelente artigo do professor Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto, publicado originalmente no Escrevinhador de Rodrigo Vianna.


Arbítrio para todos

Quando se trata de Lava Jato, é incrível como a imprensa aderiu ao senso comum. Tudo o que promotores, delegados e juízes dizem é tomado como verdade. Tudo o que se diz em contrário é suspeito. Conti deveria entender: nem todo advogado se expressa de forma gongórica, nem todo jornalista se deixa enganar por um sósia.

por Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto*

Em texto publicado em sua coluna na Folha de S. Paulo, Mario Sergio Conti (“Diante da Lei”, 19.01.16) tenta desqualificar a nota publicada por uma centena de advogados e professores de Direito sobre a chamada Operação Lava Jato. A nota não imputa irregularidades a um ou a outro juiz, delegado, procurador, embora isso fosse plenamente possível. São muitas.

Os juristas, entre os quais me incluo, alertam para os riscos de aceitar supressões ou flexibilizações de garantias básicas para punir acusados de envolvimento com atos de corrupção.

O objetivo do alerta é mostrar que os melhores fins não justificam todos os meios.

A ação de juízes e promotores, em consórcio, pode ser funcional para condenação célere e exemplar. Mas retira a imparcialidade do juiz, central ao Estado de Direito. Manter alguém preso, sem julgamento, com base apenas na gravidade da acusação ou na sua posição social, confere eficácia e legitimidade aos agentes da Lei. Mas aniquila a presunção de inocência e o devido processo.

Da mesma forma, adulterar a transcrição de um depoimento, não refletindo tudo que um depoente ou delator disse, torna mais certa e segura a punição. Mas retira a confiança na Justiça, outro valor nas sociedades civilizadas. E, por fim, desqualificar advogados que têm a função de defender quem já está condenado pela opinião pública nos aproxima dos regimes totalitários.

Não é preciso defender a nota ou seus subscritores. O tempo o fará. Mas o texto de Conti mostra três tendências preocupantes para quem ainda não aderiu à onda lavajatista.

A primeira é que o jornalismo brasileiro parece ter perdido seu atributo mais importante: a capacidade de desconfiar, de fugir do senso comum. Mario Sergio Conti é bom jornalista. Experiente e experimentado. Está na estrada há muitos anos. Devia ter aprendido a desconfiar sempre, apurar, ouvir o outro lado. Não fosse por dever de jornalista, por experiência própria. Aprendemos com nossos erros. E no caso de Conti o plural não é estilo de linguagem. Deveria ter aprendido com o vexame de publicar a descrição do enterro de uma arquiteta que não morrera. Ou de expor a própria Folha ao constrangedor episódio de entrevistar o sósia do treinador da seleção brasileira, como se estivesse entrevistando o próprio Felipão.

Quando se trata de Lava Jato, é incrível como a imprensa em geral aderiu ao senso comum. Aceita-se docemente o discurso oficial e laudatório dos protagonistas da operação. Tudo o que promotores, delegados e juízes dizem é tomado como verdade. Tudo o que se diz em contrário é suspeito.

Os jornalistas engajaram-se na elevada missão de punir os envolvidos a qualquer custo. Não se preocupam em olhar o outro lado, em desconfiar do que dizem juiz e procuradores. Não é só o Direito que pode ser vítima deste momento. O próprio jornalismo também.

A segunda tendência é a fuga do debate pelo artifício de desqualificar o antagonista. No artigo de Conti, ela se revela de duas maneiras. A primeira, um tanto vulgar. O texto vem escrito numa caricatura do linguajar forense. O chiste, quando elegante, pode ser uma crítica poderosa. Quando exagerado, fica grotesco (que o diga Chico Caruso e sua infeliz charge sobre advogados).

Nem todo advogado se expressa de forma gongórica. Nem todo jornalista se deixa enganar por um sósia.

A outra forma de desqualificação segue em jogral a senha dada pelos tarefeiros de Curitiba. Conti afirma que a Nota reflete interesses menores. Nas suas palavras, seria fruto da hipocrisia para agradar “homens de bens”.

Sem perceber (ou percebendo, sem entender o que isso representa), o jornalista cede sua privilegiada coluna para fazer coro a uma ideologia: os agentes públicos da Lava Jato são homens de bem, repositórios da esperança de limpar o país. Todos e tudo que seja visto como óbice à consumação desta “missão” é o lado negro da força. Sempre e invariavelmente. Emula-se um poder sem contraponto, sem contenção. E, pior, sem possibilidade de crítica.

Ser advogado não é demérito. Muito ao contrário. Advogados, por definição, defendem direitos. E são tão essenciais à justiça quanto os jornalistas são essenciais à liberdade de informação. Embora haja bons e maus atuando nas duas atividades. Problema é a imprensa abraçar uma versão dos fatos e desqualificar a outra.

A última tendência preocupante é a mais grave. A tese forte do artigo é a de que os subscritores seriam hipócritas ao criticar prisões provisórias e abusos da Lava Jato. Afinal, diz, no país violações são a regra para presos pobres e desassistidos. Touché. Para Conti, como o país é campeão em arbitrariedades, haveria outro mérito na Lava Jato: agora também os “de cima” são tratados como desfavorecidos. Inauguramos o programa “Arbítrio para Todos”.

O Estado não mais discrimina ninguém, trata todos com absoluto desrespeito aos direitos fundamentais. Teríamos atingido a universalização do abuso. A empolgação de Mario Sergio Conti em adular os próceres da Lava Jato é tanta que ele nem tomou a cautela de checar qual eram os signatários.

Naquela centena há muitos com atuação forte no Instituto de Defesa do Direito de Defesa, entidade voltada à defesa gratuita dos direitos de presos sem recursos. Vários dos subscritores têm ações e escritos criticando o absurdo de termos quase a metade da população carcerária sem condenação definitiva. Mas o problema, insisto, não é de mera má prática de jornalismo. O problema é de concepção.

Defender um acusado não é obstar a Justiça. A defesa não é óbice, é parte da Justiça. Chamar a atenção para garantias desrespeitadas não é melar o processo. Apontar que “flexibilizações” na lei penal são um risco a todo indivíduo, não é fazer chicana ou manipular o formalismo.

Desqualificar a defesa é o discurso engenhoso, reconheça-se, dos protagonistas da Lava Jato, a começar pelo seu líder. Grave se torna quando a imprensa abraça a tese e rebarba qualquer crítica à atuação destes agentes do Estado. Exatamente aqueles que detém poder e, portanto, deveriam ser vistos com desconfiança pela imprensa.

No final da coluna, Conti lembra um texto de Kafka, “Diante da Lei”. Ao fazê-lo se equivoca, de novo. Quem impede o pobre homem de entrar na lei não é um mero porteiro. É um guarda. Um dos tantos que estão lá para impedir-lhe de chegar à lei. É um agente do Estado.

A parábola é uma forte crítica ao poder e ao arbítrio de quem maneja a lei. Conti não entendeu a parábola. Nela se critica não só a seletividade social da aplicação da Lei. Critica-se o arbítrio do Estado, a opressão de punir sem conferir certeza, garantia àquele passível de punição.

Conti deveria ler Kafka. Encontraria no Processo uma frase de Joseph K que lhe cairia perfeitamente: “Estava cansado demais para ter uma visão de conjunto de todas as consequências da história”.

* Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto, advogado e professor titular da Faculdade de Direito da USP (Largo São Francisco), é um dos signatários da nota de juristas que denunciaram os abusos cometidos pela Operação LavaJato