O 11° mandamento: não engravidarás!

Silmara* tem 45 anos, quatro filhos adolescentes, uma filha de 27 anos e um neto de quase dois. Mora na rua desde os 15, é viciada em crack, enfrenta violência sexual, perseguição da polícia, preconceito social e, mais recentemente, o Zika, vírus considerado responsável por epidemia de microcefalia no mundo.

*Por Christiane Brito, do jornal Tornado

miséria rua

“Não engravidar nem ter relações sexuais”, segundo recomenda o governo brasileiro, poderá livrá-la do risco de gerar uma criança com a rara anomalia: já há 4.000 casos registrados no país.

Tenho certeza de que ela adoraria colaborar com a causa, porque é cordata: acaba de ser sentenciada, injustamente, a cinco anos de prisão por “tráfico de droga” sem reclamar, não acompanhou nem tem notícia do processo, sequer exigiu advogado (provavelmente há defensor público na penitenciária feminina de Franco da Rocha, suponho).

Ela também é amorosa: acaba de se reconciliar com a filha, que foi entregue para adoção quando criança, depois de muitas tentativas anteriores, infrutíferas, de fazer contato com a menina, hoje jovem mãe.

Outra qualidade de Silmara é a fé na vida: está louca para conhecer o neto, escreveu em uma carta, e tem o plano de se dedicar à costura para ganhar uns trocados na prisão. Só precisa conseguir os apetrechos necessários ao ofício: agulha, linha e tecido. Também pediu papel higiênico, um “luxo”, e desodorante.

Silmara, nossa personagem real, filha de migrantes nordestinos que fugiram da seca para morrer de fome em São Paulo, não é caso isolado, mas emblemático de uma maioria de mulheres e adolescentes carentes que vivem nos países vitimados pelo Zika.

Excepcionalmente, a sua história pode ser contada com riqueza de detalhes porque está entrelaçada à da Irmã Maria do Rosário**, uma das históricas redatoras do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).

A freira, também fundadora de uma ONG que dá abrigo a crianças e adolescentes carentes ou infratores, conhece Silmara desde a sua primeira internação, na antiga Febem (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor). Já moraram juntas em diferentes épocas, visitam-se e trocam notícias sempre.

Hoje, além de dar guarda à filha e ao neto de Silmara, a Irmã Maria do Rosário também compartilha seus destinos com terceiros, que — assim imagina — poderão ajudar na recuperação de Silmara e na garantia de um futuro melhor para os seus descendentes.

O irmão mais velho de Silmara, Afonso*, é um desses terceiros. Convidado pela freira, visitou a sobrinha e o sobrinho-neto, comoveu-se, foi buscar notícias da sua irmã moradora da Cracolândia e descobriu, enfim, que ela fora condenada à tal pena de cinco anos.

Resolveu escrever uma mensagem para o secretário municipal de Direitos Humanos e Cidadania. Não o conhece pessoalmente, mas sabe dos seus feitos.

Afonso arriscou-se num e-mail objetivo desde o título: “usuária de craque sem perspectiva”. Citou, por desencargo, o nome de um velho companheiro de lutas, Padre Júlio Lancelotti (outro dos idealizadores e guardiões do ECA) para ao menos, declarou no corpo do e-mail, obter um lampejo de atenção do ex-senador. Antes de assinar o texto, faz o pedido:

“(…) eu gostaria que ela aproveitasse este tempo em que estará longe das drogas pra poder estudar, aprender a trabalhar e se desacostumar com a vida de moradora de rua que ela vinha tendo todo este tempo.

Sr. Suplicy, o senhor acha que pode me ajudar a interromper este círculo de um ser humano sem esperança?”

Sem nenhum suspense e nenhuma surpresa (para mim), Suplicy respondeu nem uma hora depois, propondo fazer mais do que o solicitado:

“Disponho-me, sim, a ajudar. Podemos marcar uma conversa aqui no gabinete.

Disponho-me a visitá-la para melhor compreender a sua história. Pode marcar com a Sandra ou Flávia o horário no tel. (…)

Abraços, Eduardo Matarazzo Suplicy”

Eu também sou uma terceira nessa história, pretendia fazer a “publicidade” da correspondência trocada para, simplesmente, colaborar de algum modo com a revisão do processo de Silmara e com a continuidade dos trabalhos humanitários que a Irmã Maria do Rosário faz até hoje, aos 80 anos.

Mas o Zika mudou meus planos.

Os números da epidemia

Na América Latina, o acesso a métodos contraceptivos está melhorando, mas continua a ser insatisfatório. Cerca de 4,4 milhões de abortos ocorrem todos os anos no continente, sendo que 95% deles não são seguros.

A cada ano, um milhão entre as mulheres que recorrem ao aborto clandestino vai parar no hospital e duas mil delas morrem. No Peru, para dar um único exemplo, metade das mulheres relata que sua primeira experiência sexual foi forçada.

São números expressivos, evidenciam outras situações de epidemias ligadas à saúde feminina. Em El Salvador, a cada 100.000 mulheres que dão à luz, 54 morrem de causas relacionadas à gravidez (na Dinamarca, morrem apenas 7; na França, 8, e, nos Estados Unidos, 14).

A luta contra o Zika, portanto, destina-se ao fracasso. Ainda que o mosquito seja erradicado, a doença e outras similares continuarão dizimando mulheres e adolescentes das camadas sociais mais pobres.

Zeid Ra’ad Al Hussein, da ONU (Organização das Nações Unidas), apelou publicamente para que os “homens” se engajem nessa luta a favor dos direitos das mulheres, contra a violência sexual.

*Os nomes foram trocados para preservar a identidade das fontes

** Irmã Maria do Rosário Leite Cintra foi uma das redatoras do ECA ao lado de Ruth Pistori, com quem fundou, com apoio de Dom Luciano Mendes de Almeida e da pastoral do Menor, o INDICA – Instituto para o Desenvolvimento Integral da Criança e do Adolescente ( http://indica1994.blogspot.com.br