Maria, por Urariano Mota

Dona Maria era o que era, e com isso os homens queriam dizer que ela era a pessoa física apenas, carnes. Deste modo e maneiras eles a viam: mulher – e aqui vai um gênero e universo de entendimento bárbaro -, gorda, baixinha, mas com um aspecto, ar, que não devia ser o da sua condição.

Por Urariano Mota*

O Filho Renegado de Deus.

Viam como um contrassenso absoluto aquela pessoa, digo, aquela mulher gorda e baixa, que não se dava conta da sua espécie. Num tempo das divas glamorosas do cinema, num tempo de massacre da beleza anônima dos subúrbios, dona Maria não passava de “uma albacora”. Crua, essa palavra além da redução a um peixe, pois mulheres apenas se comiam e se tornar alimento era sua razão de ser, tal definição, difamação, amesquinhava-a numa coisa aquém do que entendiam o gênero feminino, pois era, além de mulher, gorda e baixinha, larga como as albacoras, que não eram uma dieta ideal para os comedores de carne bovina. Peixe gordo, congelado, a se comer apenas nas sextas-feiras santas, em sinal de penitência.

É curioso, no entanto, como as mulheres vizinhas possuíam de Maria outra visão. Elas a reconheciam como uma senhora decidida, solidária e resguardada de merecer piedade. Ela rejeitava, “me repugna”, como dizia, qualquer piedade para a sua condição. Mulher brava, de coragem e de raiva. Do gênero e da forma daqueles bravos a quem os fracos não temem, porque sabem que essa bravura se dirige somente contra o injusto mais forte. Lídia, a sua jovem comadre, dela falaria na lembrança em 2012: “Ela era uma mulher bonita, de rostinho redondo, com os olhos pequeninos, muito vivos. Para mim, era uma boneca índia”. E com os olhos rasos d’água se balançava na cadeira, como a lembrar em silêncio a injustiça que atravessa a vida de mulheres como Maria, uma injustiça que também era feita contra Lídia, depois de passar por fracassados casamentos. “Dona Maria era muito bonita, com os olhos miúdos, negrinhos”, repete. E cala, e embarga a voz. “Vocês não querem sapoti? Tá fresquinho”, oferece.

No filho de Maria dá uma brutal vontade de abraçar Lídia, de lhe dizer “eu compreendo os seus sapotis, eu compreendo a sua dor, eu sei da sua infelicidade, eu sei do que você não se queixa, do que a magoa, eu sei, amiga da minha mãe”. E mais, amarga como uma proposta e uma promessa que é uma formulação de princípio: “Eu não vou calar o seu mundo”. Ele sabe, e não diz nem a si mesmo, que revê em Lídia aquela mulher que se foi tão pletórica, vermelha, no vigor e sangue farto na altura dos seus 30 anos. Ah, é da sua natureza a reencarnação, ah, é do seu gênero, gênese e ser de transmigração, como se o espírito quisesse um novo corpo para uma vida que não foi possível. Dói nele uma dorzinha doce e fina porque Lídia não é a sua mãe, mas por ela será capaz de a ouvir e de lhe falar. Com a intensidade aguda de um violino em uma romanza, naquela, ele sabe, guardada em silêncio, naquela maldita e fina romanza número 2 em fá maior. Porque tudo então lhe recorda a senhora gorda, albacora, brava e bonita como uma bonequinha índia. Para o filho, sempre como uma mulher toda e tão só ternura. Desde 1956, passando por 1957, 1958, os anos da sua terra de felicidade, ele a guardaria nos traços e feições. Uma guarda de modo inconsciente. Era um modo retrato, daqueles no porta-retratos, em que só aparecem definidas as linhas do rosto até o pescoço, o que era um modo geral dos porta-retratos, e ao mesmo tempo, em Maria, uma exclusão, pois lhe negavam a totalidade do corpo. Ele a veria, fortalecido na lembrança por aquele retrato, como o rosto da mulher brava que era só suavidade.

Nota: Para o Dia Internacional da Mulher, recorto um trecho do romance O Filho Renegado de Deus.