Walter Sorrentino: A falência de um “democrata”

Fernando Henrique Cardoso decreta a falência da Constituição em entrevista a O Estado de São Paulo neste domingo, defendendo o impeachment de Dilma Rousseff.

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Em impressionantes 24 parágrafos,1026 palavras e 5874 toques, na versão eletrônica (mais ainda na impressa), a palavra Constituição é citada uma única vez ao afirmar “Você tem momentos no Brasil de mudança qualitativa. A Constituição foi um, o Real foi outro” (como se vê, après FHC, le déluge”).

O termo crime de responsabilidade como único fator definido para acatar processo de impeachment, não é citado. O casuísmo de apensar outros argumentos ao atual pedido de impeachment – que alega as pedaladas fiscais – não merece menção.

Estado de direito democrático, direito ao devido processo penal, condenação a extrapolações judiciais ilegais e abusivas como condução coercitiva, delações sob pressão e usadas como provas, vazamentos seletivos à mídia, gravação de conversas presidenciais sem mandato judicial – aliás com mandato espúrio no tempo, como se sabe – não merece atenção do príncipe dono da voz. Para ele, o importante seria o que foi dito nas gravações, afirmação irresponsável, segundo o melhor direito, porque se dispõe a condenar a partir de ilícitos judiciais. E mais: Lula ser investigado pelo STF sobre esse pretenso crime cometido nas gravações não pode: tem que ser pelo juizinho da exceção.

Decididamente, não é conduta de democrata. Parafraseando Jânio de Freitas, nenhum democrata pode apoiar de ocasião a transgressão constitucional para tentar eliminar a corrupção, desejo de todos, nem mesmo para sair de uma crise política. Ao contrário, é exatamente nessas horas que a Constituição precisa ser invocadas para não dividir a nação e gerar feridas incicatrizáveis.

Vindo de pregar repetidamente a renúncia da presidenta porque o impeachment seria um “perigo” e contrário ao caráter íntegro e honrado da presidenta (sic), agora ele pede o impeachment porque “Dilma deu um sinal de que renuncia ao poder. Só que não foi institucional”. Quer dizer, indicar como ministros pessoas que não sofreram condenação judicial transitada em julgado, seria golpe e não medida institucional própria do Executivo.

Fica aí mal disfarçada a preocupação com Lula no governo. Aliás, Lula é citado sete vezes na matéria, três a mais que Dilma. Eduardo Cunha, zero. Temer, zero na versão eletrônica.

Incrível a afirmação de FHC de que “as ruas pediram três coisas basicamente, eu não estou endossando: Dilma fora, Lula na cadeia e viva a Lava Jato”. Porque é exatamente o impeachment a alternativa que ele endossa abertamente, aliás, o leit motiv da entrevista. Não sem antes fazer uma defesa da Lava Jato que é perigosa e cínica. Perigosa porque conclama indiretamente ao espírito justiceiro, contorna o envolvimento dos próprios parceiros tucanos envolvidos e elude o fundamental – não se pode admitir juízo de exceção num Estado de direito, porque fora disso desacredita-se a Constituição. E cínica porque alega, nesse diapasão, a demonstração suposta de maturidade das instituições.

Fazer a enfática defesa de que a Constituição seja contornada desta vez, é um desserviço à nação e expõe o país à desmoralização. Gonzáles, amigo de longa data do ex-presidente, e numerosos editorialistas de EUA e Europa já registram preocupações com a violência institucional que se pretende no Brasil com a atual condução do impeachment.

É do feitio do tipo falar e tergiversar em cima. Mas até a máscara de liberal lhe cai nesta hora, em que ex-presidentes deviam ser expressão de equilíbrio e sensatez. FHC rende-se ao vale-tudo, perde aquela fina camada de verniz que procurava manter. Quem não respeita a Constituição não pode ostentar o título de democrata. Essa tomada de posição vai ficar na história, mais uma vez, com a imagem de que ele não gosta – o de um sujeito da democracia instrumental, de conveniências, de costas para o povo e a nação. O homem ladino, o da política com punhos de renda, FHC, expõe nessa entrevista os punhos sujos.