O muro de Brasília e o muro do Brasil

Na Esplanada dos Ministérios, um frágil muro em frente ao Congresso, erguido por presidiários (se não era ironia, agora é!) vai separar os manifestantes pró e contra o impeachment (leia-se golpe), durante a votação na Câmara Federal, neste domingo, 17 de abril de 2016. Um muro de placas metálicas que será protegido por cerca de 4 mil policiais que farão a segurança.

Por Celso Vicenzi*

Palácio do Planalto dividido

Mesmo com todo o aparato policial, é uma temeridade juntar num mesmo espaço, separados por apenas alguns metros, talvez 50 mil manifestantes de cada lado. E se forem 100 mil de cada lado? Terminada a votação, um lado irá comemorar e não é difícil imaginar que poderá haver provocações. Quem segura essa massa? Algo pode fugir ao controle, mesmo com todo o esquema de segurança. É muita gente num espaço quase compartilhado. E o ódio que já tomou conta das redes sociais e do país, pode assumir, ao vivo, proporções temerárias.

Se a violência explodir, muita gente terá que assumir o ônus por esse desfecho. A começar por quem permitiu, até hoje, que um criminoso como Eduardo Cunha comande não só a Câmara, mas também um processo de impeachment que pode trazer consequências graves ao país por décadas. É também uma irresponsabilidade dos poderes constituídos permitir que um Congresso, em que boa parte responde a processos na Justiça, decida sobre o destino de uma presidenta que não é acusada de nenhum crime de responsabilidade, apesar dos malabarismos político-judiciais para tentar incriminá-la. Ao apostar na quebra da ruptura institucional, quem segura o que pode acontecer no país? E quem se responsabilizará?

Maior que o muro de Brasília, no entanto, é o muro do Brasil. Não é feito de concreto, ferro e cimento, como o muro de Berlim, que dividiu o mundo e foi construído em 1961 e derrubado em 1989. O muro do Brasil é muito pior. Separa os brasileiros por séculos, em duas sociedades: a dos colonizadores e dos colonizados, a da casa-grande e da senzala, a dos 50% mais pobres que detêm apenas 2% da riqueza nacional e a dos outros 50% que ficam com 98% da renda. Para ser mais justo nesse recorte, é preciso acrescentar que apenas 13% da população brasileira tomam posse de 87,4% da renda nacional e um restrito grupo de somente 5 mil famílias se apropria de 40% do fluxo de renda, segundo estudo realizado com base em dados do Imposto de Renda Pessoa Física de 2012.

Essa divisão começou, de um lado, com os invasores portugueses, espanhóis, holandeses, franceses e todos que aqui aportaram, escravizaram, mataram e roubaram os povos indígenas. Calcula-se em 2 milhões a 5 milhões a população indígena que habitava o Brasil em 1500. Hoje restaram cerca de 900 mil indígenas, de 305 etnias e 274 diferentes línguas. Povos que aqui viviam há 10 mil, 15 mil anos. Hoje cada vez mais ameaçados pelo avanço do agronegócio, da mineração, de madeireiras e da cobiça de brancos invasores em pleno século 21.

À escravidão indígena se sobrepôs a dos negros, trazidos da África e comprados pelos senhores de engenho, pela nobreza, pelos ricos, por todos que tinham dinheiro, até pela santa madre igreja. A carne mais barata do mercado é a carne negra, sim. Cerca de 9 milhões de negros e negras, adultos e crianças foram trazidos ao Brasil em 29 mil navios negreiros. Mais de 600 mil morreram durante a travessia do Atlântico. Essa dívida nunca foi paga e o racismo ainda se propaga em todo o território nacional.

O Brasil negro e índio sempre esteve separado por um muro invisível do Brasil branco, aristocrático, dos doutores de muitos privilégios. Aos negros e índios juntaram-se os brancos, pardos e mestiços da classe trabalhadora mais pobre, aqueles que sempre fizeram os serviços mais pesados, insalubres e perigosos por salários que mal sustentam seus corpos e o de suas famílias. É esse o povo que vive nas periferias das cidades, em favelas. Mas que a partir de Lula, mais do que nunca, sonha em participar da festa democrática, sem que precise se contentar com migalhas ou ter que se satisfazer apenas com postos serviçais e empregos de segunda mão.

Por isso, muito antes de construírem o muro de Brasília que decidirá se a maior parte dos brasileiros e brasileiras continuará subjugada a uma elite que despreza 54 milhões de votos e tenta tomar a presidência da República ancorada em casuísmos jurídico-políticos, o Brasil já estava dividido.

Não foi a segunda vitória de Dilma – a quarta do PT à Presidência –, ou o inconformismo de Aécio e do PSDB com a derrota, ou ainda a impaciência da elite financeira, política, policial e judiciária brasileira com o resultado das eleições de 2014, que provocou essa ruptura no país. Ela acompanha, desde sempre, a nossa história. Apenas, tornou-se mais explícita na era da comunicação multimídia e on-line.

Apareceu com muito mais nitidez, apesar de uma mídia entorpecedora e manipuladora tentar encobri-la. Se a miscigenação não diminuiu o racismo, o mito de uma sociedade cordial também não consegue esconder a violência secular. A começar pela crueldade de sermos um dos 10 países com os maiores índices de desigualdade social, situação ainda mais hedionda num país que é também uma das 10 maiores economias do planeta. E isso não seria possível sem sólidas instituições comprometidas com os privilégios de uma minoria.

Para manter o muro do Brasil sob controle, temos a polícia que mais mata em todo o mundo, segundo a Anistia Internacional. Mas não mata qualquer um. Mata sobretudo negros. E mata muito porque há um Judiciário que tolera. Há uma elite que consente. Há uma mídia conivente. Há um Brasil racista que assiste, inerte, sem se escandalizar. E quando não mata prende. E tortura. Nossas prisões, superlotadas e sem qualquer higiene, não estão muito distantes das masmorras medievais.

São muitas as diferenças entre o Brasil do lado de cá e o Brasil do lado de lá. Enquanto 400 grupos e coletivos das periferias de São Paulo assinam manifesto em defesa da democracia, a Ordem dos Advogados do Brasil – a mesma que apoiou o golpe de 1964 – protocola pedido de impeachment no Congresso. Enquanto movimentos sociais, de mulheres, de intelectuais, de artistas, de estudantes, de professores, de trabalhadores e dos mais variados setores da sociedade civil organizada vão às ruas e se manifestam contra o golpe, a Fiesp, os sindicatos, federações e confederações patronais, parcelas da classe média, entre outros, não se constrangem em liderar ou se alinhar ao lado daqueles que pedem a volta dos militares, que ainda estão presos ao fantasma do comunismo e flertam com os setores mais reacionários e fascistas, em favor do golpe.

O frágil muro do Brasil não é muito mais resistente do que o improvisado muro de Brasília, que separa o Brasil dos que defendem o respeito à Constituição e aos 54 milhões de votos, daqueles que apoiam teses que não se sustentam diante de um tribunal sério e isento, movidos pelo desejo de chegar ao poder pela via indireta, sem nenhum voto do eleitor. E pior de tudo: tendo à frente do golpe um vice-presidente que passará à história como traidor, e um presidente da Câmara envolvido em vários escândalos de corrupção e que já deveria ter sido preso, não fosse a conivência do Judiciário, da mídia e das forças políticas que dão sustentação ao golpe.

O muro de Brasília é só um pequeno retrato de um imenso muro, erguido há séculos, no Brasil. Drummond diria: “Mas como dói!”