Belas, rebeldes e valentes

Em pleno século XXI, a sociedade brasileira continua a dar sinais de machismo e misoginia. Uma antiga revista, transformada hoje em filipeta da direita, encarregou-se, na semana que passou, de mostrar qual o lugar reservado às mulheres, para boa parcela do pensamento dominante no Brasil.

Por Joan Edesson de Oliveira* 

Dilma Rousseff e Carina Vitral - Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ Agência Brasil

A mulher do vice-presidente (assim com letra minúscula mesmo) da República foi apresentada como exemplo de virtude, como retrato daquilo que se espera de uma mulher: “bela, recatada e do lar”. A matéria, assinada por uma mulher, é um libelo machista da primeira à última linha, derramando-se em elogios à virtude da “quase primeira dama” que usa vestidos na altura dos joelhos e “tem tudo para se tornar a nossa Grace Kelly”, como se andássemos à procura de uma.

Uma rápida circulada pelas páginas da nossa história mostra que os nossos melhores exemplos femininos estão longe do modelo sonhado por essa parcela mais conservadora e retrógrada da nossa sociedade. A pernambucana Bárbara de Alencar, nascida no século XVIII e criada no Ceará, na vila do Crato, fez três guerras, mesmo sendo uma mulher do “lar”, casada e com filhos. Participou da Revolução Pernambucana de 1817, das guerras pela Independência em 1822 e da Confederação do Equador em 1824, quando morreram dois dos seus filhos. Perseguida, morreu em 1832, no Piauí, sem ver a tão sonhada república.

A africana Luiza Mahin, escravizada e trazida para o Brasil, princesa na África e quituteira em terras da Bahia, teve participação ativa nas revoltas de escravos na primeira metade do século XIX, na Sabinada e na Revolta dos Malês. Mãe do abolicionista Luiz Gama, foi do lar e da luta.

A baiana Maria Quitéria recusou-se a ficar em casa enquanto os patriotas lutavam pela independência. Às escondidas do pai cortou o cabelo e alistou-se como o soldado Medeiros no Batalhão dos Periquitos. No 2 de julho de 1823, quando os baianos comemoraram a derrota das forças portuguesas, Maria Quitéria, cadete, heroína, foi aclamada pelo povo em Salvador.

Ana Maria de Jesus Ribeiro, nascida em Santa Catarina, casada com um sapateiro, “do lar”, não hesitou em seguir o seu coração e as suas paixões: Garibaldi e a República. Virou Anita e, a partir daí, sua vida foi de guerra sem trégua ao lado de Giuseppe. Lutou pela liberdade em dois continentes e foi “heroína de dois mundos”, pela república dos farrapos e pela república italiana, onde deixou a vida.

Antonia Alves Feitosa nasceu no dia internacional da mulher, em 8 de março de 1848, no Tauá, na então província do Ceará. Virou Jovita por apelido da família e alistou-se para lutar no Paraguai. Jovita Feitosa recusou-se a ser “do lar” e chegou a ser aceita no exército como segundo-sargento mas, segundo alguns historiadores, teve o embarque negado pelo Ministro da Guerra, o que lhe levou ao suicídio com apenas 19 anos de idade.

Mais de sessenta anos depois de Jovita, também em um 8 de março, em 1911, nasceu a baiana Maria Gomes de Oliveira, dona Maria Déa. Como Anita, também foi casada com um sapateiro, mas preferiu ser a Dona Maria dos cangaceiros, a Maria Bonita do Capitão Lampião, primeira-dama do cangaço. “Do lar” para a caatinga, Dona Maria passou uma década no cangaço, até morrer assassinada ao lado do capitão, num tempo, como disse o poeta potiguar Crispiniano Neto, em que “o papel da ternura era tão duro, que o amor precisava andar armado”.

Não há espaço suficiente para tantas mulheres belas, rebeldes e valentes na história do nosso país, desde àquelas anônimas índias que fizeram a resistência ao invasor português na Confederação dos Cariris, passando pelas escravas que se rebelaram contra a escravidão, até chegar às centenas e milhares de mulheres que enfrentaram a ditadura militar recente, muitas das quais deixaram a vida na tortura, nas ruas ou nas selvas do Araguaia.

Atualmente há uma mulher na Presidência da República, uma Presidenta (com letra maiúscula); as duas maiores entidades estudantis do país, a UNE e a UBES, são dirigidas por duas jovens mulheres de luta, Carina Vitral e Camila Lanes; o Partido Comunista do Brasil tem na sua Presidência, desde o ano passado, uma jovem lutadora, a Deputada Federal Luciana Santos, integrante de uma combativa bancada feminina, do PCdoB e de outros partidos, na Câmara Federal.

Hoje, a jovem mineira Dilma Vana Roussef, que passou quase três anos presa e foi bestialmente torturada, é Presidenta da República. Sofre um ataque brutal das forças conservadoras e reacionárias, inconformadas com as sucessivas derrotas para um projeto político democrático e popular. Sofre, diariamente, os mais cruéis ataques misóginos e machistas, o último deles perpetrado por um fascista que fez, em transmissão ao vivo para todo o país, uma apologia à tortura e a um torturador, o mesmo que torturou a ainda menina Dilma. Tudo, porque Dilma recusou-se ao papel submisso e subalterno que querem impor às nossas mulheres.

A todas as mulheres belas, valentes e rebeldes, que tiveram a ousadia de lutar pela liberdade, a nossa homenagem.

*Joan Edesson de Oliveira é educador, Mestre em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará.