O refluxo progressista

O último ano evidenciou o recuo significativo das forças de esquerda na América do Sul. Diversos fatos políticos apontam mudanças na correlação de forças.

Por Gustavo Guerreiro

Correa, Evo e Maduro na Cúpula Climática da Bolívia - ABI

A direita ganhou a presidência na Argentina, a partir das inconsistências do kirchnerismo; no Brasil, foi reforçada pela conciliação conservadora do Partido dos Trabalhadores, acuado pelo parasitismo do capital financeiro; no Equador, está ganhando fôlego devido à fragilidade do discurso oficial; na Venezuela, enfrenta violento processo de sabotagem, que expõe fragilidades do governo de Nicolas Maduro, baseado em uma economia extremamente dependente de petróleo; na Bolívia, pairam incertezas sobre a possibilidade de Evo Morales disputar um novo mandato, enquanto o Paraguai amarga um regime autoritário-policial, provocado pela ruptura institucional decorrente da derrubada do presidente Fernando Lugo.

Nenhuma característica política traduziu melhor a experiência sul-americana do que o enfrentamento à pobreza como legítima responsabilidade do Estado e não como resultado mágico das forças do mercado. Com base nessa premissa, governos de centro-esquerda ganharam musculatura, mobilizando as camadas populares a partir da crítica ao déficit social do dogma neoliberal.

O ciclo progressista permitiu conquistas democráticas e importantes reformas constitucionais, resgatando direitos negados por séculos pelas elites. Argentina, Brasil e Venezuela aliaram de formas distintas programas sociais com políticas de expansão do mercado interno, consolidando uma base eleitoral entre os mais pobres. A Bolívia promoveu expressiva ascensão política de grupos étnicos neutralizados pelo velho sistema racista colonial. A eleição de Evo Morales, indígena da etnia uru-aimará, foi o ponto alto dessa ruptura.

As mudanças nas relações de poder, no entanto, não alteraram a inserção econômica da região na divisão internacional do trabalho. Pelo contrário, em uma década de aumento dos preços das matérias-primas, os países da América do Sul apenas reafirmaram a sua posição como exportadores de produtos primários. Ao invés de uma guinada ao socialismo, os governos progressistas amargaram experiências neodesenvolvimentistas malsucedidas. As políticas sociais ajudaram a aliviar os ânimos por um tempo, mas o descontentamento se expandiu para a classe média, insuflada pelos monopólios midiáticos.

As tensões internas são articuladas de forma combinada e desigual em um contexto de feroz ofensiva do capitalismo, que ainda se manifesta pelo seu fenômeno mais determinante: a crise financeira mundial de 2008. Gestada no epicentro da maior potência global, tem como reflexo significativo para as economias emergentes a queda dos preços das commodities, principalmente do petróleo, que caiu de U$$ 150,00 para menos de U$$ 50,00 o barril. Trata-se de uma crise sistêmica, em que as principais economias mundiais ou crescem pouco, ou estão estagnadas.
Além da controvérsia sobre a dimensão do esgotamento, inflexão ou refluxo do período atual, os governos progressistas, sob pressão de atores internacionais e endógenos, optam por caminhos que levam à renúncia às mudanças estruturais em curso. As forças de direita se evidenciam em dois principais fenômenos: a ressuscitação do discurso neoliberal como alternativa para a crise e uma onda reacionária, que escancara todo tipo de intolerância (religiosa, xenofóbica, étnica, de classe e de orientação sexual). Há grupos de extrema direita que conclamam até mesmo a volta de regimes totalitários.

A direita sul-americana joga suas fichas no "fim de uma etapa" de governos progressistas, ao mesmo tempo em que não apresenta propostas para sua superação, mas formas de recompor o conservadorismo neoliberal e o realinhamento automático às políticas dos Estados Unidos para a região.

Em artigo publicado no site Foreign Policy, o professor de Relações Internacionais da universidade de Colúmbia, Christopher Sabatini, declara que os governos que sucederam Lula e Hugo Chávez representam a “triste morte da esquerda latino-americana”. Considerando que a alternativa a eles se pauta na ideologia desmoralizada de livre mercado e que há lutas expressivas em andamento, como nas manifestações de estudantes chilenos pelo ensino gratuito, na greve geral no Paraguai, ou nas demandas de camponeses na Colômbia e no Peru, essa afirmação parece bastante discutível.  

*Gustavo Guerreiro é Mestre em sociologia e pesquisador do Observatório das Nacionalidades