Rumo à 2ª Conferência Nacional da Saúde das Mulheres

 

Conferencia saude da mulher
 
Carmen Lúcia Luiz*

 

Estamos vivendo tempos difíceis. Como disse Eduardo Galeano: “É o tempo do medo. Medo, das mulheres, da violência dos homens. E, medo dos homens, das mulheres sem medo.”

As tentativas de retrocesso, neste último período, tem sido espantosas! Temos alguns direitos garantidos, como o aborto legal para mulheres com gravidez resultante de estupro desde 1940, e mesmo esse direito está agora pendurado, com a reafirmação do pacto da Costa Rica enfiada na reforma ministerial votada e aprovada na Câmara e no Senado há poucas semanas.

Para nós mulheres em geral, as novas tecnologias tem se prestado, mais que nunca, a produzir produtos para continuar ou aumentar a opressão e o controle sobre nossos corpos. Isto faz parte da estratégia de domínio machista: o uso do capitalismo e de suas estruturas como ferramenta de diminuição, de desvalia das mulheres. E, num processo de retro-alimentação, também o capitalismo se utiliza do machismo, objetificando e vendendo, simbólica e realmente, estas mesmas mulheres. A venda real de mulheres como objeto sexual movimenta cerca de 32 bilhões de dólares por ano, no mundo.

Desde quando as mulheres realizam os cuidados das outras pessoas da casa e da comunidade, de preparar – dos alimentos aos remédios -, que a sociedade se dá conta que estas são atividades poderosas. A caça às bruxas, durante os Ofícios da Santa Inquisição, na Idade Média, matou vários milhões de mulheres que saiam à noite, para colher ervas e fazer garrafadas, cozidas na hora da colheita, para bem melhor aproveitar as propriedades medicinais das plantas.

Tudo dentro das regras dos procedimentos que hoje chamamos de orgânicos. Noites de lua, muitas mulheres, fogueiras, danças e cantos, coisas do demônio? Não, invencionices da igreja católica da época para tirar o poder das mulheres. Até descrição de homens com chifres e rabos, patas de bode, fazendo parte destas “noitadas” estão descritas em várias denuncias acatadas por processos da época. Vale lembrar que a igreja católica, neste tempo, só admitia homens. 

Hoje, em funções menores, até admite alguma mulher. Mas a Santa Inquisição foi apoiada também pelas igrejas Protestantes e até pelo próprio Estado, tendo um significado religioso, político e sexual. Estima-se que aproximadamente 9 milhões de pessoas foram acusadas, julgadas e mortas neste período, onde mais de 80% eram mulheres. As igrejas e o Estado destituindo os direito das mulheres. Qualquer semelhança com os dias atuais será mera coincidência?

A Santa Inquisição reforçou, muito, a competência das igrejas e do Estado de legislar sobre ocorpo das mulheres e fortaleceu o poder médico para prestar os cuidados antes realizados pela curandeiras. Ou “bruxas”. E cada vez mais, desde então, nosso corpo é submetido a procedimentos para o conforto de outrem que não nós mulheres. Vejam o parto. A posição da mulher, deitada, só é boa para o/a obstetra. Dr. Caldeyro-Barcia, cientista médico uruguaio e mesmo o nosso brasileiro Dr. Moysés Paciornick já cantavam esta pedra nos anos 70, quase cinquenta anos atrás. Ainda é preciso lutar pelo direito de realizar o parto da maneira que a gestante escolha. Com o/a acompanhante que deseja. Alguns dos procedimentos que são rotinas hospitalares são de pouca ou nenhuma eficácia, e causam aumento de dores e muito desconforto para as mulheres. O uso indiscriminado da ocitocina sintética para apressar as contrações uterinas, na maior parte das vezes, só serve para a produção de partos em série. A equipe hospitalar lucra, pois vale a máxima que tempo é dinheiro. Mas este não é o tempo da gestante nem do bebê. A proibição de comer e mesmo de beber água durante o trabalho de parto, a realização de episiotomia de rotina, os exames de toques mais frequentes que o necessário, principalmente em hospitais-escola, são práticas abusivas e costumam ser feitas sem o consentimento da gestante e muitas vezes, sem sequer o seu conhecimento.

De toda a medicação psiquiátrica dispensada nas redes de atenção básica do SUS, 72% são consumidas por mulheres. Onde, na Política Nacional de Saúde Mental, se materializa uma atenção estratégica para estas mulheres, implementada com perspectiva de gênero?

Em relação às Violências, posso dizer que este tema faz parte do currículo de um numero reduzidíssimo de universdades. Pelo menos, os cursos de medicina, fármacia, psicologia, serviço social e direito deveriam ter o atendimento pelo Protocolo de Atenção às Vítima de Violência Sexual como parte de sua grade curricular. Este protocolo também pode ser um bom lugar para introduzir o tema LGBT nestes cursos. O Protocolo prevê a notificação deste atendimento, através da nova Ficha de Notificação de Violências Interpessoais e Autoprovocadas. Nesta ficha, entre os dados das vítimas, estão os quesitos “Identidade de Gênero” e “Orientação Sexual”. Um grande número de pessoas confunde estes dois quesitos. 

Também um grande número de pessoas acha que quando se fala de pessoas LGBT, estamos falando só de pessoas homossexuais. Mas estamos falando de pessoas homossexuais e heterossexuais. A maior parte das pessoas T- travestis, mulheres transexuais e homens trans, são heterossexuais. As letras LGBT não estão unidas pela homossexualidade e sim pelo sofrimento causado pela discriminação e pelo preconceito. Todas estas questões precisam fazer parte da formação. E nosso intuito maior, com a introdução destes dois quesitos, – identidade de gênero e orientação sexual – é auxiliar na visibilidade e, portanto no dimensionamento das fobias contra pessoas LGBT. Hoje, muitas violências contra mulheres transexuais que não realizaram a transgenitalização, ou como comumente se fala, não fizeram a cirurgia pra mudança de sexo, são consideradas violências contra pessoa do sexo masculino, não fazendo parte das estatísticas de transfobia, de violência de gênero ou de feminicídio. Ou seja, as mulheres T não tem direitos em relação à lei Maria da Penha ou à lei de crimes hediondos. 

Especialmente em relação às pessoa transexuais, as tecnologias tem se mostrado capazes de facilitar o processo de visibilização destas pessoas. Com o uso da hormonioterapia, das próteses, de cirurgias plástica e de outros recursos, mulheres travestis e transexuais tem se sentido mais confortáveis para aparição pública com o gênero adotado.

Também vale lembrar que, desde que a justiça liberou a nova identidade civil para muitas pessoas sem a exigência da transgenitalização, diminuiu a procura por esta cirurgia. Por conta da posse de nova identidade civil condizente com seu gênero adotado, também vimos que aumentou o acesso desta população aos bancos escolares universitários.

Para mulheres lésbicas, segundo resultados do Seminário Nacional de Saúde LGBT, as demandas específicas são bastante simples: acolhimento sem discriminação, uso de instrumentos adequados à sua condição de lésbica para coleta de Papanicolau, implantação de serviços de fertilização assistida estendidos para lésbicas, os mesmos que estão nos Princípios e Diretrizes da Politica de Saúde das Mulheres do Ministério da Saúde, que já prevê estes serviços para casais sorodiscordantes para HIV. E, todas as demais questões comuns a todas as mulheres.

Assim como as opressões de gênero são determinantes de saúde e doenças para mulheres em geral, a lesbofobia o é para lésbicas, em particular. Da mesma forma, o racismo povoca agravos físicos, mentais e sociais nas pessoas negras, especialmente em mulheres, sejam crianças, adolescentes, adultas ou idosas. A anemia falciforme, doença genética, incurável e com alta morbimortalidade, acontece em pelo menos 3500 crianças nascidas vivas, predominantemente negras, no Brasil, cada ano. As mulheres negras são a maior parte das internadas por sequelas de aborto inseguro.

Ainda é preciso lutar pelo direito de realizar um aborto de forma segura, sem risco de morte. No Brasil, mais de 60% das gestações não são planejadas e 45% não são desejadas. Estima-se que sejam realizados mais de um milhão de abortos ilegais no país por ano, dos quais perto de 1/3 acabam resultando em internações hospitalares e um número grande, em morte. O aborto inseguro é a 4ª causa de morte de mulheres, em nosso país. Os maiores números estão nas regiões Norte e Nordeste. Agora, recentemente, por ocasião da epidemia de infecções pelo vírus zyka, a ONU recomendou aos países latino-americanos que afrouxassem as legislações restritivas para a legalização da interrupção da gravidez. Então, acho que quem vai liberar o aborto é o capitalismo, pois é mais barato descriminalizar o aborto do que tratar os agravos resultantes do abortamento inseguro.

É fundamental fazermos vários recortes para montarmos nossa colcha de militâncias, ter um olhar sobre os atores e atrizes sociais, suas demandas, suas ações, numa perspectiva de gênero, de raça/etnia, de classe, de geração, de orientação sexual. Não vamos hierarquizar as misérias, mas temos que entender que co-vulnerabilidades, quando existentes, são sempre mais danosas.

E se a gente tem o entendimento amplo do que é saúde, se a gente entende que saúde não é apenas a ausência de doenças, que saúde é o completo bem-estar físico, mental e social (e que outras dimensões resolvamos usar), fica mais fácil abranger muitas áreas da vivência humana, porque saúde é tudo!

Saúde é uma área onde a participação popular é constitucional. Portanto, Conselhos de Saúde Nacional, Estaduais e Municipais e Conferências de Saúde são instâncias de participação social com respaldo constitucional. Além da Conferência Nacional de Saúde, realizada a cada 4 anos, vemos serem realizadas várias conferências temáticas de saúde: Conferência de Saúde do Trabalhador, Conferência de Saúde Indígena, Conferência de Saúde Ambiental, Conferência de Saúde Mental, entre outras. Relativa à Saúde das Mulheres, estamos ainda na 1ª Conferência Nacional de Saúde da Mulher, acontecida há 30 anos atrás, em 1986, preparatória para a construção do SUS. Felizmente, mesmo com muitas dificuldades, o mundo gira e a fila anda. No dia 16 de março p.p., o Conselho Nacional de Saúde acatou a nossa proposta de encaminhamento para a realização da 2ª Conferência Nacional de Saúde da Mulher e votou favoravelmente, com unanimidade de seu pleno. Portanto, convido todos os movimentos organizados de mulheres com atuação na área da saúde, para que juntas possamos construir esta Conferência, com suas etapas municipais e estaduais.

Mulheres, vamos à luta, rumo à 2ª Conferência Nacional de Saúde das Mulheres!!!

* Carmen Lúcia Luiz é Enfermeira Sanitarista, Especialista em Psiquiatria Social e Conselheira Nacional de Saude.