O garoto, a família e as instituições

Ele era filho de pai preso por tráfico de drogas e roubo. A mãe foi solta recentemente após praticar os mesmos crimes. Ítalo, o garoto de dez anos morto pela Polícia Militar de São Paulo, não passou os dez primeiros e únicos anos de sua vida ao lado dos pais. Ele viveu seus últimos minutos supostamente trocando as marchas de um carro mesmo sem saber dirigir.

Fabíola Perez*

menino

A Ítalo, a vida não deu segunda chance. O futuro lhe foi roubado por um tiro na cabeça, o homicídio por resistência policial. O garoto com nome de herói sobreviveu a incêndios, mas não resistiu à polícia. Ele, que queria ser cantor, viu seu sonho morrer desde o momento em que veio ao mundo.

Na favela do Piolho, na zona Sul de São Paulo, como em tantas outras do Brasil, garotos geralmente um pouco mais velhos do que Ítalo têm o mesmo destino: os abrigos para ressocialização após cometer algum delito. Essa é ponta mais visível do sistema. A parte que ninguém percebe começa pela falta de estrutura familiar desses meninos e meninas. Ítalo não é exceção. Enquanto os pais cumprem pena no sistema carcerário, o garoto ficava aos cuidados da avó e do tio. Assim acontece com grande parte das crianças e adolescentes. Sem a presença dos genitores desde a primeira infância, eles deixam de criar laços afetivos, são privados das primeiras manifestações de carinho e atenção e, consequentemente, carregam consigo esse buraco de sentimentos.

A família de Ítalo morou por algum tempo embaixo de pontes e viadutos. Enquanto a mãe estava na prisão, o garoto mesmo na casa da avó passava dias nas ruas. Pés descalços perambulando pelo Morumbi, barriga roncando e cabeça vazia. Literalmente esvaziada e desprovida de qualquer imagem para associar ao afeto, distante de qualquer significado de configuração familiar. Essa é a realidade do garoto que planejava assaltar um condomínio. Essa era a lógica na cabeça do garoto de 10 anos e de seu parceiro de 11. Ítalo e o amigo passaram a última década sem referências. O mundo deles não conheceu padrões sociais porque eles próprios nasceram excluídos da sociedade. E um conjunto de elementos consegue provar porque, como diria Eduardo Galeano, “a justiça é como uma serpente, só morde os pés descalços”.

As instituições brasileiras ignoram Ítalos e os tratam com indiferença desde o nascedouro. Ele pedia comida na rua desde os oito anos. Desde então, os moradores da comunidade chamaram o conselho tutelar. No abrigo, uma das psicólogas logo percebeu que o garoto tinha uma nítida carência. Segundo relatos da família, muitas das passagens pelos abrigos não eram comunicadas aos parentes. Entre as ações dos conselhos tutelares estão a realização de visitas domiciliares para verificar as condições da família, o diálogo constante com a família ou responsáveis pela crianças em situação de vulnerabilidade e a troca de informações com os responsáveis quando a criança está no abrigo. Ao que parece, isso não ocorreu no caso de Ítalo.

As instituições sociais falharam gravemente. O sistema de educação falhou com o garoto e não o acolheu, o sistema de justiça não o priorizou. O sistema de segurança falhou quando deixou de adotar políticas de controle rigorosas na circulação de armas de fogo. Quando deixou de rastrear fronteiras. As instituições falharam, mas a polícia acertou o alvo. Enquanto todas as instituições falharem, outros garotos não saberão o que é pertencer a um núcleo familiar, continuarão vivendo à margem da sociedade e de forma invisível serão alvejados pela falta de políticas públicas, de educação, de ressocialização e de oportunidades. Serão mortos pela vida e pelo seu instinto de sobrevivência.

*Fabíola Perez é jornalista