Ítalo, 10 anos, morto com um tiro na cabeça

O ano é 2006. Seu filho nasceu neném. Ítalo nasceu neném. Mas a sociedade só olhou para ele por alguns segundos. O tempo de mirar. E atirar. 

“Saiba: todo mundo foi neném. Einstein, Freud e Platão também. Hitler, Bush e Saddam Hussein. Quem tem grana e quem não tem”, canta Arnaldo Antunes na música “Saiba”.

Por Rita Lisauskas*, no Blog Ser mãe é padecer na Internet

Ítalo, 10 anos, morto por policiais - Foto: Reprodução

Mas seu filho come quando tem vontade. Abre a geladeira sempre cheia do iogurte favorito. Ítalo também sentia fome, mas tinha de pedir comida aos vizinhos. Roubava as gôndolas do supermercado de vez em quando.

Seu filho tem a pele macia e cheirosa. Já Ítalo tinha marcas de queimaduras de cigarro pelo corpo todo.
Seu filho vai para a cama quentinha. Ítalo morou com tias, avó e em abrigos, já que o pai está preso e a mãe passou vários períodos na cadeia. Também teve um carro velho e abandonado como “lar”.

Seu filho recebe carinho e é um doce com todos. Ítalo era ríspido, contou uma psicóloga de um dos abrigos por onde passou. Não confiava em ninguém.

Seu filho tem você (ou o pai, ou os avós ou a escola) cuidando dele o dia inteiro. Ítalo vagava sozinho por aí.

Seu filho vai para a melhor escola do bairro. Ítalo não frequentava a escola assiduamente.

Seu filho dormia enrolado em um edredom quinta-feira passada. Fazia frio em São Paulo. Já Ítalo estava na rua. Disse a um amigo que ia “matar os moradores e dormir no prédio.” Escolheu como alvo um edifício qualquer que fica na zona sul de São Paulo. Mas em vez disso roubou um carro que estava aberto e com as chaves no contato. Segundo a polícia, atirou várias vezes enquanto dirigia. Morreu com um tiro na cabeça.

“Um bandido a menos!, escutei de pessoas próximas quando souberam de sua morte.

E eu só conseguia pensar meu Deus, um menino de 10 anos morto desse jeito. Uma criança. De apenas dez anos. Lembrei de como meu enteado era ingênuo e doce quando tinha essa idade.

Lembrei também de um ótimo documentário que tinha assistido dias antes, “O Começo da Vida”, em cartaz nos cinemas e também na Netflix. “Se mudarmos o começo da história, mudamos a história toda”, anuncia o trailer do filme, que fala da importância dos cuidados nos primeiros anos na vida de uma criança. “É como construir a estrutura de uma casa. Você constrói a estrutura sobre a qual todo o resto de desenvolverá” afirma, no filme, o Pediatra da Harvard Medical School, Charles A. Nelson.

Os alicerces de Ítalo eram ruínas. Seria preciso de uma força tarefa para retirar os escombros, refazer a fundação. Mas ninguém se interessou por aquele projeto mal acabado.

“Eu não acredito em criança negligenciada pela mãe. Eu acredito em criança negligenciada pelo ambiente. Se uma mãe negligencia uma criança a ponto de ela ficar sem saída, cadê as outras pessoas? Uma criança não é só filha de uma mãe. Ela é neta de alguém, ela é sobrinha de alguém, ela é vizinha de alguém, ela é cidadã de algum lugar. Ela tem uma nacionalidade”, afirma também no documentário a psicanalista e doutora pela USP Vera Iaconelli.

Os pais não tiveram condições ideais para cuidar de Ítalo. E jamais irei julgá-los. Quem sou eu? A miséria e as drogas destroem famílias aos borbotões, principalmente as de baixa renda. Mas e nós, sociedade? Não devíamos ter feito algo por esse menino para salvá-lo e também para nos protegermos do que ele poderia ser transformar ao ser largado à própria sorte?

“Bandido bom é bandido morto!”, alguém falou alto, na padaria onde eu tomo café ao ver a notícia pela TV. Vários clientes assentiram com a cabeça. E o papo ficou por isso mesmo. A notícia no telejornal também mudou: “Vamos falar agora de esporte?”, sugeriu o apresentador. Os únicos momentos em dez anos de vida em que Ítalo foi protagonista de algo terminavam ali.

Minto! Na noite anterior Ítalo também foi olhado por alguns segundos. Quando miraram em sua cabeça. E atiraram.