Intelectuais homenageiam Boris Schnaiderman
Neste sábado (18) completa um mês que o Brasil perdeu um de seus maiores tradutores. Boris Schnaidermen se foi, aos 99 anos de idade, mas deixou uma imensurável contribuição aos brasileiros. Ucraniano de origem judaica e radicado desde criança no brasil, foi tradutor, escrito e ensaísta, além de professor emérito da USP.
Publicado 17/06/2016 15:36
Passado um mês da morte de Boris, Prosa, Poesia e Arte* traz três depoimentos de intelectuais que falam sobre o legado do tradutor: Lucio Agra, poeta, músico, performer e professor universitário; Marlova Aseff, jornalista, tradutora e doutora em Estudos da Tradução e Sinome Homem de Mello, poeta, tradutora e gestora cultural.
O poeta Ademir Assunção homenageou Boris Shnaiderman com o um poema, que Prosa, Poesia e Arte também traz na íntegra. Ele é jornalista e um dos editores da revista Coyte. O poema foi publicado originalmente em 2012 no livro A Voz do Ventríloquo.
Veja os depoimentos:
Lucio Agra – Já escrevi coisas sobre pessoas que admiro e mesmo com quem tive proximidade e que nos deixaram antes: Renato Cohen, Wally Salomão, Haroldo de Campos…
Mas acho que não conseguirei evitar o tom pessoal, afetado de tristeza por não poder mais encontrar um dos homens que mais admirei em toda a minha vida. E que conto entre os meus melhores amigos.
Boris foi certamente uma das pessoas mais íntegras que conheci. Leal, correta ao extremo e de uma generosidade absoluta.
Conheci-o ainda em fins dos anos 80, quando o convidamos – juntamente com Aurora Bernardini – para a inauguração do Círculo de Investigação Poética do Rio de Janeiro.
O nome do nosso grupo (criado por mim, Carlito Azevedo, Monique Balbuena e Bráulio Fernandes, na Letras da UFRJ) aludia propositalmente à OPOYAZ, a sociedade de jovens estudiosos de poesia que se formou nas primeiras décadas do século 20, na Rússia recém-ingressada na Revolução (e mesmo antes). Lá, o que os movia era a emergência de uma forma nova de produção poética que, se fosse dito então, não se acreditaria que seria anos depois perseguida pelo regime: o futurismo. Junto com o que se convencionou chamar de “formalismo russo”, foram ambos movimentos das artes que acreditavam na máxima de Maiakovski: “Não há arte revolucionária sem forma revolucionária”.
Conhecíamos toda essa narrativa e por isso convidáramos justamente Boris e Aurora. Eram os nomes certos para dar início a uma movimentação que, naquela altura, não era nada óbvia para uma escola como ainda seguia sendo a Letras e uma cidade como o Rio.
Não me esqueço do encanto de Boris ao nos conhecer, de como falou de nós, imediatamente, com Haroldo de Campos e assim outras histórias se seguiram.
Mas, além disso, Boris me recebera em sua casa e trocamos muitas informações. Nossa conversa imediatamente prosperou pois era a possibilidade de interlocução mais rica que eu poderia ter. Nesse aspecto quero ressaltar que, embora tradutor, o que nos unia não era esse interesse mas a paixão por toda a cultura, por sua rede de relações. Boris era extraordinariamente minucioso e ao mesmo tempo gostava de receber dados que poderiam correlacionar várias linguagens: o cinema, a pintura, a arquitetura, o teatro. Muitas vezes me recomendou filmes que nem sequer figuravam na tradição do grande cinema russo e soviético. E conseguia ver essa mesma tradição com espírito crítico e discernimento.
Ao mesmo tempo opinava sobre temas atualíssimos e, até o último instante que nos vimos, manteve esse vigor de observação ao mesmo tempo que jamais perdia a suavidade.
Com Boris e Jerusa, meus dois amigos maiores, quase meus pais adotivos, conheci V.V. Ivanov, numa situação inesquecível. Por causa deles tornei-me amigo de Haroldo, de Augusto, de Décio. Foi Boris que me assinalou a importância de um Angelo Maria Ripellino que passei a ler avidamente.
E foi com seu livro “A poética de Maiakovsk através da sua prosa” que comecei a decidir um caminho de pesquisas no qual mergulharia durante anos. Posso dizer que foi Boris que me abriu uma vereda que definiria várias das minhas futuras opções de estudo e mesmo de criação artística.
Falamos inúmeras vezes de ir à Rússia, mas isso nunca se concretizou. Acho que não consigo imaginar alguém que pudesse ser o mais perfeito parceiro numa empreitada desse porte.
Há duas situações que particularmente me comovem ao lembrar desses anos todos de amizade que, tivesse ele vencido os 100, chegaria a completar quase quatro décadas:
A primeira se deu em 2001, quando comecei a dar aulas na PUC, na Graduação em Comunicação das Artes do Corpo, levado por Renato Cohen. Montei, como trabalho de final de semestre, resultante de uma optativa, uma pecinha chamada “A barraca de feira” de Alexandr Blok. O texto foi-me presenteado por Reni Chaves Cardoso, outra saudosa amiga, amorosa divulgadora das vanguardas russas. Eu o convidei para a apresentação, sem certamente imaginar que se abalaria de casa para ver um trabalho escolar. Ele foi, viu e elogiou. E eu sabia que isso não era pouco porque quando Boris não gostava de algo, evitava se manifestar.
A segunda lembrança vem de um livro publicado pela Companhia das Letras em 1997 e infelizmente jamais reeditado. Seria tão importante hoje que muitos lessem “Os escombros e o mito – a cultura e o fim da União Soviética”… Na elaboração dessa excepcional coleta de ensaios, lembro-me de ter-lhe passado algumas poucas informações. Mas ele não deixou de agradecer-me no prefácio, num belo gesto de reconhecimento.
Há, estou certo, uma grande obra ainda por descobrir e publicar que ele nos legou. É decerto de uma preciosidade tremenda. Poucos países no mundo podem se orgulhar de ter tantas obras traduzidas diretamente do russo – e admiravelmente bem traduzidas. Boris é uma espécie de anjo protetor de muitos de nós. Um anjo naquele sentido que Win Wenders colocou em seus filmes, um mestre especial, carinhoso e de uma justiça total.
Foi, também, um grande trabalhador: nas inúmeras vezes que o visitei, nas habituais conversas de fim de tarde em torno ao chá na casa do casal Schnaiderman-Pires Ferreira, não me lembro de ver Boris sem que não estivesse no meio de algum trabalho, fosse martelando sua máquina de escrever ou mesmo manuscrevendo cadernos e mais cadernos.
É muito difícil dar um depoimento sobre pessoa tão imensae de tamanha dignidade. Perdi, repito, um dos meus melhores amigos. Não haverá outro igual.
Marlova Aseff – Estive com Boris Schnaiderman apenas em uma ocasião, em 2004, quando ele já estava com 87 anos, mas mesmo assim seguia muito produtivo. Estava prestes a lançar a tradução de “Um jogador”, de Dostoiévski, e havia ido a Florianópolis para ministrar a aula inaugural do curso de Pós-Graduação em Estudos da Tradução na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Aproveitei para entrevistá-lo para o jornal local.
Lembro que na época fiquei impressionada com o fato de Boris ter testemunhado as filmagens de “Encouraçado Potemkin” nas escadarias do porto de Odessa. Sua trajetória de vida era incrível, algo de outro mundo para mim. Mas hoje, relembrando o encontro, há coisas que me impressionam mais. Uma delas é a humildade que demonstrava, mesmo sendo reconhecido como um dos melhores tradutores da literatura russa no Brasil. Suas respostas curtas revelavam muita objetividade e uma honestidade intelectual que o impedia de falar do que não conhecia a fundo ou de julgar a tradução de um colega. E me parece que ele gostava mais de escrever do que de falar.
Naquele dia, ele contou que não sabia se gostava mais de Tolstói ou de Dostoiévski, e que apontar quem era o maior entre os dois era “uma discussão meio boba”. Por outro lado, revelou ter muita afinidade com algumas criações de Górki. Disse que a tradução se fazia com coragem e ousadia, e que se o seu trabalho ficasse imperfeito, outros no futuro o fariam melhor. Contou que só traduzia obras que o tocavam de perto, o que não queria dizer que precisava concordar integralmente com o autor. Isso ele ilustrou muito bem num artigo do livro “Tradução, ato desmedido” (Perspectiva, 2011) no qual falava da trajetória da tradutora Rosa Freire d’Aguiar. Ele reflete ali sobre o que chama de “uma contradição dolorosa”:
“Mais uma vez em princípio, para se traduzir bem um autor, é preciso identificar-se com o original, o texto traduzido é como que a expressão de uma segunda natureza do tradutor. Mas, ao mesmo tempo, o autor da obra é um outro, eu não posso encampar as suas idiossincrasias, os seus rancores e preconceitos. Tive que lidar com este problema desde a minha primeira tradução de Dostoiévski. Não há como aceitar o seu chauvinismo grão-russo, o seu antissemitismo e a sua prevenção contra os poloneses. E, ao mesmo tempo, tenho que dá-lo, na língua de chegada, em todo o seu furor e desvario. Afinal, a literatura não pode ser reduzida à amenidade dos jogos florais. Por conseguinte, em lugar de uma simples identificação, acaba-se tendo uma relação de amor e ódio. Chega-se, até, a uma nova categoria: a tradução raivosa, isto é, aquela que se faz com raiva do autor.”
Seja lá que forças o moveram ao longo de seus 99 anos, Boris Schnaiderman foi uma dádiva para a literatura no Brasil.
Simone Homem de Mello – Conheci Boris antes de conhecê-lo: quando li "O Beijo e Outros Poemas", de Anton Tchekhov, ainda na escola, sem atinar para a existência do tradutor, menos ainda para o seu nome. Só a posteriori reconheci-o naquela marcante voz tchekhoviana, com seu falar elíptico. Alguns anos depois, ao conhecê-lo pessoalmente, o que detive como marca sua foram justamente as longas pausas significativas do seu falar em serena voz compassada. O que impressionava em Boris, talvez até menos que o fato de ele ter testemunhado ocorrências que nos foram transmitidas apenas em livros de História – desde a filmagem de “O Encouraçado Potemkin” até os combates da FEB na Segunda Guerra, passando pela experiência da migração – é o fato de ele sempre transparecer, em pessoa, que essas vivências não tinham sido vãs. Talvez integridade seja a palavra que circunscreva com maior precisão essa inseparabilidade entre o que se diz, o que se faz e o que se é. Um coincidir-se consigo mesmo que ficava ainda mais transparente nas pausas do seu falar. O inestimável mérito de suas traduções e de suas reflexões crítico-literárias e tradutórias adviria, para mim, não apenas do rigor, da perspicácia e da sutileza de seu pensar, mas também dessa integridade sempre presente.
Leia o poema de Ademir Assunção
A vida passa na janela de um trem
quantos giros por aí, até me perder
de mim, e encontrar lá na frente, um outro,
eu mesmo, enfim, no rodopio
deste mundo maluco, o passo
às vezes em falso, pisando o chão sujo
da américa, confuso caminho no tempo
e no espaço, poema
sem métrica fixa, estrela muda, quase
nula, graveto estalando na tulha, um grão
no pó da galáxia, ouço tiros, vejo música,
escrevo sinos, o sangue fluindo no pulso,
céus de ontem, azuis ou brancos, trens
que partem sem hora ou destino,
e na última janela a vida passa e acena,
chapéu de flores, sorriso nos lábios,
por detrás do vidro, a límpida face,
nos convidando pra próxima sessão de cinema