Big Jato, de Cláudio Assis: poesia para não virar pedra

Em meio a uma narrativa que coaduna a obra Big Jato de Xico Sá à liberdade de montagem típica do cinema pernambucano, Cláudio Assis apresenta em seu filme a história de um Brasil que, ao mesmo que se moderniza, agoniza às sombra de seus entraves. 

Por Diuvanio de Albuquerque Borges*, especial para o Vermelho


Big Jato - Foto: Divulgação

Ao público desacostumado com o diretor de Baixio das Besta e Amarelo Manga, Francisco pode ser visto em sua passagem à puberdade com doses de realismo, no sentido mais tacanho do termo, típicos de qualquer cidade brasileira. No entanto, sua montagem vai além da mera narrativa de impressões, atravessa um mar de contradições que unem os traços mais rústicos de uma vida amadurecida à mingua com a poesia cotidiana e seus devaneios líricos.

O filme inicia com um diálogo entre os Franciscos, pai e filho, na boléia do caminhão limpa-fossas que dá título ao filme. A partir de tal jogo de perguntas e respostas o diretor apresenta seus personagens: um garoto que formula todas suas perguntas em torno da mesma estrutura – Fulano faz? – e um pai impaciente que apresenta em cada uma de suas respostas, apesar de muito simplórias, formulações que indicam não só sua personalidade como decantam em si todo uma herança patriarcalista. Aos poucos os personagens são inseridos, apresentados com suas nuances, tornam-se versos de uma estrofe maior que vai sendo montada. Em contraste ao garoto Francisco.

George, personagem caracterizado pelo pertencimento ao mundo dos números – afinal “matemática dá dinheiro, poesia só calo na tua imaginação” – e sua constante luta por ter o nome pronunciado à semelhança do Beatle, opõe-se ao personagem de Xico em sua repulsa pela forma de ganhar a vida da família, exceto a venda de produtos de beleza por sua mãe. Tem suas falas sempre marcadas pelo sarcasmo em relação ao irmão, uma espécie de marca que busca o diferenciar do restante da família. Por outro lado, tem-se Davi. O personagem sedimenta todos os preconceitos do pai, as falas do Velho em relação ao jovem sempre são de cunho homofóbico, o que fica marcado na fala em que o pai afirma que iria enviar o garoto para o militarismo por vê-lo afeminado, assim como a cena em que o pai ao retornar de sua prostração do mundo real vê Davi sentado ao canto da mesa, cena bastante simbolica ao apresentar a saída de Xico e que demonstraria a mudança dos rumos da família. No entanto, o garoto é empurrado para o seu lugar de costume e a cadeira é ocupada pelo patriarca, apesar de algumas alterações, nada havia de mudar na família.

Um terceiro personagem passa quase que despercebido, tem suas falas abafadas pelos conflitos familiares, pelos homens da família, a irmã mais nova, Maria Helena. Não são poucas as cenas que a garota aparece, porém sua presença não é notada, não tem direito a falar, seus desejos são anulados. Mesmo quando a mãe, personagem que consegue se opor ao Francisco pai, é colocada em primeiro plano suas falas e comportamentos parecem uma nota fora, tanto que sempre ao final de suas falas o Velho a interpela chamando-a de louca. O papel representado pela atriz Marcélia Cartaxo tem sua força na oposição, uma espécie de negação das caducas ideias do patriarcado, contudo tem sua força anulada pelo Velho, e que em tal movimento consegue reafirmar as forças mais retrogradas brasileiras.

O personagem de maior força, também representado pelo ator Mateus Nachtergaele, é o irmão do Velho, Nelson. Espécie de homem do mundo, mesmo sem ter saído de Peixe de Pedra, reúne em si a outra face formativa de Xico, o sonho e a poesia. Locutor de uma rádio local que toca as contradições local-universal condensadas na relação entre o sucesso das bandas os Beatles e os Betos, Nelson é averso ao trabalho. A forma construída pelo diretor a opor-se às idéias de Nelson são as frases que tentam exaltar o trabalho por parte do Velho Francisco: “Tu acha que ficar em uma salinha sentado, no ar condicionado, e sem suar a camisa nem nada é trabalho?”. Opondo-se ao irmão, o locutor durante as músicas solta frases depreciativas em relação ao “trabalho de merda” do “urubu da carteira assinada”. Apesar de serem personagens completamente diferentes, eles são um único, sintetizados principalmente na figura do jovem Xico. Tal síntese fica muito clara em cenas em que há uma alternância entre o personagem do garoto em primeiro plano e o pai, ou o tio.

Tal preocupação em não ser como o pai é uma marca perseguida a todo momento pelo garoto. Há uma cena bastante poética em que Xico passa a mão no rosto, após ter sua vida sexual iniciada com uma prostituta, e olhando o nascimento de seus primeiros pelos no rosto – marca de comparação ao bigode do pai – permanece declamando frases de uma poesia chula, ao que vai ser oposto ao seu momento de influência agora do tio, quando está na rádio e passa a declamar versos de Camões, e que é proibido de ler Maikovski, afinal “Prefiro perder um filho pra qualquer coisa, menos pra poesia”

Em uma cena de um primor, Cládio Assis apresenta os sonhos de Nelson e suas frustrações ao sobrinho, pede que não os encarcere, que vá embora da cidade. A cena é marcada pelo espaço entre o sobrinho e o tio separado pelas grades da cadeia. A partir de tal cena, o jovem decide qual rumo tomar na vida, não virar fóssil.

Trabalhar a construção poética do filme Big Jato é avançar por rimas perfeitas que têm sua métrica rompida a todo instante. A harmonia em que se encontra o caminhão limpa-fossas com a natureza ao cortar as estradas locais só são rompidas ao sermos tomados pela violência da frase do parachoques “quem não reage rasteja”. Como um verdadeiro paradoxo – aqui desconsideramos a frase original do livro de Xico Sá: “dirigido por mim, guiado por Deus” – o caminhão ao mesmo tempo que é parte da natureza local de Peixe de Pedra, não é mais, pois as pessoas deixam de usar fossas. Ao mesmo tempo que constrói a relação pai e filho, a boléia do caminhão é rompimento, principalmente pelas canções e falas de Nelson. Lugar de reafirmação de valores de um patriarcado que aos poucos vai sendo superado, contudo de forma quase imperceptível.

O roteiro adaptação por Hilton Lacerda e Anna Carolina Francisco ganha inteireza na direção de Cláudio Assis não só pela força do livro de Xico Sá, mas sim pela força poética de problematizar um Brasil que moderniza-se ao mesmo tempo que mantém suas forças mais arcaicas em vigor. Big Jato apresenta não só a síntese da formação do garoto Xico como também problematiza a formação do Brasil, dividido entre as contradições internas do trabalho e do patriarcado do Velho Francisco e as contradições dos sonhos poético malfadados de Nelson.

Sinopse:

Big Jato, nos anos 70, um homem (Matheus Nachtergaele) trabalha como motorista de caminhão limpa fossa, apelidado de Big Jato, em Cariri, Ceará. Seu filho, Francisco, sempre o acompanha. A cada dia, o menino vê sua vida se transformar, assim como tudo ao seu redor.

Elenco: Matheus Nachtergaele, Rafael Nicácio, Marcelia Cartaxo, Gabriele Lopes e Francisco de Assis.
Direção: Cláudio Assis
Roteiro: Hilton Lacerda
País/Ano: Brasil/2014
Gênero: Comédia Dramática
Duração: 1h37
Classificação: 16 anos