Gustavo Guerreiro: De Orlando a Caarapó

Dois acontecimentos dramáticos e aparentemente sem conexão têm se destacado nos últimos dias: o massacre na boate Pulse em Orlando, nos EUA, e o ataque aos índios guarani-kaiowá, em Caarapó, Mato Grosso do Sul.

Por Gustavo Guerreiro*


Gustavo Guerreiro: De Orlando a Caarapó

Muito embora tenham acontecido em lugares e contextos completamente distintos, guardam entre si uma triste conexão, que revela perturbadora degradação do senso de humanidade com raízes na sistêmica crise político-econômica que abala o planeta.

O primeiro fato horrorizou pessoas em todo o mundo. Erroneamente considerado o “maior massacre da história dos Estados Unidos” (o maior foi o massacre de Wounded Knee, com fuzilamento de 150 indígenas, entre mulheres e crianças, em 1890, na Reserva Indígena de Pine Ridge, pertencente ao povo dakota, no estado da Dakota do Sul), esta execução vem em um momento de descrédito da sociedade estadunidense às suas instituições. Tensões políticas e econômicas, iniciadas com a crise de 2008, têm produzido acirramentos cada vez mais intensos não apenas naquele país, mas também e sobretudo na Europa, países árabes e América Latina.

Nos EUA, a retórica do ódio é personificada na figura do candidato presidencial republicano, o bilionário Donald Trump, que se capitalizou politicamente através de ideias belicistas, militaristas, misóginas e xenofóbicas. Com o massacre de Orlando, reiterou seus apelos para uma proibição de imigrantes muçulmanos e latinos de modo geral.

O atirador Omar Mateen, embora relacionado ao grupo terrorista Estado Islâmico, se define pela conjunção de duas ideologias trágicas. Embora em lados opostos, o fascismo e o wahabismo guardam muito mais semelhanças do que diferenças. O massacre na boate Pulse, embora tenha autoria reivindicada pelo Estado Islâmico, foi perpetrado por um homofóbico estadunidense, com armas estadunidenses, sob leis que estimulam o armamento geral daquela sociedade. É, portanto, um ato terrorista provocado pelo próprio Ocidente, por uma mentalidade fascista.

Trump aceita gays em suas empresas. Típico capitalista, afirma que pouco importa a orientação sexual da pessoa desde que dê conta do trabalho, mas nada diz sobre a homofobia em seus discursos e se posiciona contra a união civil de pessoas do mesmo sexo. Não há dúvidas de que a ideologia fascista, muito embora disfarçada, seja amplificada por figuras emblemáticas da política estadunidense. A omissão de determinados assuntos sensíveis no debate eleitoral é proposital e minimiza a importância em discutir chacinas, violência policial, atos racistas e perseguição contra minorias naquele país.

O mesmo fenômeno se manifesta no Brasil, que testemunhou no dia 14 de junho em Caarapó, cidade do sul do Mato Grosso do Sul, um massacre (mais um) contra os indígenas guarani-kaiowá.

Fazendeiros em caminhonetes, motocicletas, cavalos e trator usados por pistoleiros e capangas, atiraram contra o acampamento de indígenas Guarani e Kaiowá, na Fazenda Yvu, área de retomada indígena, matando um indígena e ferindo outros cinco, entre mulheres e crianças.

A ação paramilitar dos fazendeiros sugere a mesma lógica de exasperação do embate ideológico e de contraofensiva de posições políticas ultrarreacionárias. Não por acaso, o deputado Jair Messias Bolsonaro havia sido recebido por mais de 200 pessoas no aeroporto de Campo Grande, no dia 9 de junho, cinco dias antes do massacre de Caarapó. O parlamentar tem, reiteradas vezes, proferido discursos criminosos, recomendando aos “amigos da área rural um fuzil 762 para os brasileiros do MST”.

Na certeza da impunidade e do apoio político-midiático, a criminosa agroburguesia do Mato Grosso do Sul levou o recado de Bolsonaro a sério. O massacre de Caarapó é uma ação respaldada por discursos fascistas infames de autoridades, pela omissão do Estado e pela ofensiva reacionária do Congresso Nacional, cujas bancadas ruralista e evangélica perpetram ataque aos direitos indígenas através da PEC 215/00 e das CPIs da Funai/Incra e do Cimi.

O Estado brasileiro é o principal responsável pelos entraves nos processos demarcatórios das terras indígenas. A Constituição Federal de 1988 determinava um prazo de, no máximo, 5 anos para todas as demarcações no país. O que se vê, no entanto, são longos processos judiciais (alguns com quase 30 anos) que criam instabilidade e insegurança jurídica em todos os níveis.

A demarcação das terras terra é a principal bandeira do movimento indígena. Para os grupos de que já possuem terras demarcadas, o problema é a insuficiência das políticas de produção de agricultura familiar, sobretudo a Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) diferenciada e adaptada às suas necessidades culturais, educação escolar adaptada e assistência social. O caso de Caarapó revela essa dupla situação, pois existe uma aldeia indígena (Tey’i Kue, já demarcada) e a terra indígena Dourados-Amambaipeguá, objeto do relatório recentemente publicado pela Funai. Tanto a reivindicação fundiária quanto investimentos em políticas sociais são taxados como “vagabundagem” pela direita.

Nos dois casos, a maneira dissimulada com que os meios de comunicação “isentos” (que não podem reconhecer abertamente que apoiam fascistas declarados) escondem o seu apoio a esses fascistas é simples: espetacularização e novelização das tragédias e alienação em relação aos temas fundamentais. No caso brasileiro, os jornais substituem o termo “massacre” por “conflito”. Como pode haver conflito com tamanha discrepância de poder entre fazendeiros e indígenas? E no caso da boate Pulse? Por que a retórica midiática destaca a aliança de um psicopata com o terrorismo em detrimento do problema de uma cultura homofóbica? É a mesma fórmula usada para classificar, por exemplo, o massacre de Israel contra a Palestina, tanto na dissimulação do caráter terrorista da direita, quanto na retórica de que terrorismo islâmico é o verdadeiro mal a ser combatido. Os grupos oprimidos passam, assim, a ser “tudo que não presta”, parafraseando o deputado Luis Carlos Heinze (PP/RS), quando classificou, em seu discurso, quilombolas, índios, gays e lésbicas.

Sem dúvida, o perigo fascista que se vê hoje não significa nenhuma ameaça direta para a ordem “democrática”, como nos moldes clássicos da Itália e da Alemanha. Sua recente aparição se dá pelo conluio entre o sistema político em crise representativa e os poderosos interesses midiáticos e econômico-financeiros, sobretudo liberais. A própria sociedade faz seu serviço sujo, tornando desnecessário para o capital recorrer aos serviços de uma extrema direita que segue na esteira dos movimentos fascistas históricos. É o que representam essas barbaridades. São espasmos de um sistema em crise terminal.

O fascismo voltou. E seu retorno é umbilicalmente ligado com a propagação da crise sistêmica do capitalismo monopolista, financeirizado e mundializado. O curso real ou mesmo potencial desse movimento fascista apela à maior vigilância das forças progressistas em todo o mundo. Esta crise está destinada a piorar e, consequentemente, a ameaça de recorrer a soluções fascistas vai se tornar um perigo real. De Orlando a Caarapó, que não se retroceda um milímetro.

*Gustavo Guerreiro é sociólogo e indigenista