Quem perde com o golpe é a integração sul-americana, diz Celso Amorim

Para Celso Amorim, o chanceler mais longevo da história do Itamaraty, o impeachment da presidenta Dilma Rousseff tira a credibilidade do Brasil como ator internacional. A flexibilização do Mercosul, o enfraquecimento da política com a África e os acordos bilaterais propostos pelo governo interino de Michel Temer podem "enterrar a política industrial brasileira".

Celso Amorim - Agência Brasil

Eleito recentemente diretor-geral da Unitaid, órgão mundial para o combate a doenças como tuberculose, malária e Aids, Celso Amorim, que é ex-ministro das Relações Exteriores de Luiz Inácio Lula da Silva, ex-ministro da Defesa de Dilma, há fortes elementos de que houve uma conspiração para afastar presidenta e enterrar as investigações da Operação Lava Jato.

Em entrevista à revista Brasileiros, Amorim fala sobre as ataques contra Lula, Dilma e à esquerda e se mostra preocupada com o governo interino de Michel Temer. O ex-ministro não vê com bons olhos o Itamaraty sob o comando de José Serra. Acredita que a mudança da política externa pode causar danos. “Construir é difícil, des¬truir nem tanto”, diz.

Leia a entrevista na íntegra:

Brasileiros – A seu ver o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff é golpe?

Celso Amorim – Há várias definições para golpe no dicionário. Uma delas diz que golpe é uma mudança súbita. No nosso caso não foi súbito, mas tudo o que a gente está vendo agora nos faz acreditar que há elementos de golpe, inclusive a conspiração prévia. Outra coisa que chama a atenção é a mudança de projeto político. É como se mudasse da Cristina Kirchner para o Macri sem uma eleição.

O Temer fazia parte da chapa da Dilma, mas ele fez uma aliança para o lado oposto. Isso tira a legitimidade do movimento, independentemente do fato de que as acusações contra ela, as pedaladas fiscais, são coisas menores, praticadas por outros governos, e que o TCU aceitava.Como nada apareceu com relação a ilícitos que levasse ao impedimento, pegaram isso.

Os parlamentares que deram as justificativas para votar “sim” na Câmara falaram da conjuntura da obra e ninguém pode ser impedido pela conjuntura da obra. Tem que esperar a eleição. Os fatos que apareceram agora levam a crer que de fato havia um desejo de tirar Dilma, o PT e uma coligação de centro-esquerda, mas também de amortecer a pressão das investigações da Lava Jato.

Se você quiser se apegar à ideia de que golpe é súbito, não dá para chamar de golpe, mas se for olhar para a substância, se não for golpe, é algo muito parecido com isso.

E como o senhor avalia a reação da comunidade internacional?

O impeachment tirou o soft power, tirou a credibilidade do Brasil como ator internacional. Quando vejo, por exemplo, o que se falou nesse encontro do Serra na Argentina, de intermediar uma crise na Venezuela…

O Brasil não tem credibilidade para intermediar crise nenhuma. Estamos de um lado. É muito diferente do que aconteceu na época do presidente Lula. O jornal O Estado de S. Paulo fala que éramos totalmente bolivarianos. Isso não é verdade. Tivemos compreensão com esses países, assim como tivemos atitudes de proximidade com o Peru, a Colômbia, que têm governos de centro e direita.

Nossa intermediação era vista como positiva porque havia confiança no Brasil. Hoje não temos mais essa confiança. É um movimento claramente de direita que está acontecendo. É uma mudança muito grande de espectro político e sem voto. É muito grave.

O que esperar da gestão de José Serra à frente do Itamaraty?

O problema não é o Serra, não tenho nada pessoal contra ele. Pelo contrário, sempre tive boa relação com ele. Uma das coisas mais importantes que eu consegui fazer foi a negociação de propriedade intelectual e saúde, quando ele era ministro da Saúde e eu era embaixador em Genebra. Eu não teria conseguido fazer se não fosse ele, e ele não teria feito sem mim.
O problema é que o Brasil perdeu a credibilidade. Havia uma simpatia universal pelo Lula, pelo PT e pela Dilma, em menor nível. Existe uma percepção de que os ataques contra eles têm um componente de ser contra o pobre, contra a mulher, de preconceito contra operário. Isso afeta a credibilidade do país.

As manchetes dos jornais internacionais falam em suspeita de conspiração, outros já cravam que é. Assim como quando as pessoas veem o Lula ser objeto de uma condução coercitiva sem justificativa legal. Aquilo foi feito com o objetivo de humilhar. Tudo isso cria uma dúvida.
Pelo que eu li nos jornais, ninguém ligou para o presidente interino Temer. O Obama não ligou, o presidente de Portugal não ligou, a Costa Rica, que não pode ser acusada de bolivariana, manifestou sérias preocupações. O secretário-geral da OEA, um organismo cujo maior contribuinte são os EUA, também manifestou preocupação.

O Brasil vai ter muita dificuldade, mas também é um país grande, ninguém vai nos ignorar ou romper relações comerciais. Mas a nossa capacidade de influência foi afetada por algum tempo.

O senhor sente que tudo o que ajudou a construir ao longo desses anos como chanceler agora está em xeque?

Construir é muito difícil, destruir é muito fácil. Bastam duas ou três decisões erradas. Porque as pressões naturais já vão em outro sentido. Os EUA podem errar que depois consertam, são o país mais poderoso do mundo. Aqui não é bem assim.

Essa coisa de flexibilizar o Mercosul, por exemplo. Eu sei que parte do empresariado já vinha dizendo isso. Alguns países do Mercosul queriam isso e nós resistíamos porque prevíamos que, se fosse flexibilizar, cada um ia para o seu lado. Uruguai queria um acordo com os EUA, nos custou muito convencê-lo de que não podia. A Argentina também. O Brasil teve que fazer força para manter a tarifa externa comum e manter os países juntos, porque isso nos fortalecia a todos como grupo para negociar.

O Brasil criou uma parceria estratégica com a União Europeia, mas isso porque ela via no Brasil também a capacidade de influência na região. Você não precisa dizer que vai mudar a política africana, basta diminuir a ênfase que os projetos não vão para a frente. E se você não vai, os outros vão: antigas potências coloniais e a China também.

Serra diz que não devemos ter compaixão. Compaixão faz parte da política. Senão, ela vira um assalto à mão armada, cada um lutando pelo seu lado. Mesmo que queira ver o seu interesse, tem que ver a longo prazo e isso envolve ter uma atitude solidária com outros países. Eu fico preocupado com esse imediatismo comercial que não percebe as coisas. Qual é o critério para fechar embaixadas?

Eu ouço falar que poderiam fechar a Embaixada da Libéria. Será uma pena. É o único país africano governado por uma mulher. Parece até de propósito. Um país que lutou contra o ebola e com o qual o Brasil poderia aprender para controlar suas próprias epidemias.

A flexibilização do Mercosul nunca mais terá volta. Aí você vai pensar: “Puxa vida, não podemos liberar o comércio com a Argentina porque lá entram produtos americanos ou chineses de graça”.

Falam também que o Brasil não faz parte de acordos bilaterais. O Brasil e nenhum BRICs, porque esses acordos todos são pensados com objetivos geopolíticos. Esse famoso TPP (Parceria Transpacífico), de que tanto se fala, foi feito para isolar a China. Nem convidaram a China.
Independentemente dos objetivos geopolíticos, para os EUA, se puderem organizar o mundo de tal maneira que tenham um acordo com a Ásia do jeito que quiserem, com a América do Sul com algo tipo a Alca e com a Europa também, para eles é ideal. Além disso, tem as cláusulas. Todos esses acordos têm cláusulas que eles chamam de Trips plus.

Em matéria de rigidez de propriedade intelectual, vão além do que vai o acordo da Organização Mundial do Comércio (OMC). Nós, no OMC, trabalhamos pelo contrário, para dar uma abertura. Se fizer esses acordos, o Brasil vai se desindustrializar mais rápido do que já ocorreu. E vai abandonar mais ainda os bens de capital.

As pessoas criticam, mas, graças ao poder de compra da Petrobras, revitalizaram-se os estaleiros e a indústria naval brasileira, que tinha acabado. Isso dá emprego para muita gente, não é uma coisa abstrata. Na indústria química, farmacêutica também. Aceitando esses acordos, você acaba com a política industrial de vez.

Fazendo um acordo de compras governamentais do jeito que era previsto na Alca, você não pode usar seu poder de compra para fomentar a sua indústria. Chico Buarque dizia que gostava que a gente falasse fino com a Bolívia e grosso com os Estados Unidos. Acho que agora está acontecendo o contrário. Você ter uma política de compreensão do problema do País mais fraco, tentar resolver o problema a longo prazo, e ao mesmo tempo ter coragem de enfrentar pressões, que são enormes e vêm de todos os lados, é muito importante.

Pensando nesse cenário geopolítico, quem é que ganha com essa mudança de política externa brasileira?

Se fosse começar a escrever um romance policial, você começaria com essa pergunta para chegar ao ator por trás de tudo. Vamos pegar os EUA, que são a potência mais próxima. Em termos tradicionais do interesse do Estado americano, da influência e da presença, o fato de o Brasil ter subido no cenário internacional incomoda. Mas por outro lado, essa presença às vezes ajuda a resolver certos problemas.

Há setores dos EUA que devem estar muito contentes por não sermos mais uma ameaça à hegemonia deles na região. Mas foram os EUA que nos pediram, por exemplo, para negociar o acordo nuclear com o Irã. A frase de Obama era: preciso de amigos que falem com quem eu não posso falar. Então há setores ligados ao governo que acham que é melhor ter um mundo no qual os EUA são o sócio mais forte, mas não totalmente dominante. Para contrabalançar a presença da China na África, por exemplo, é bom para os EUA que tenha um Brasil, que é mais amistoso, ou uma Índia.

Para quem tem essa visão mais longe, o que aconteceu no Brasil foi ruim. É difícil dizer quem ganha. Eu posso dizer quem perde: a integração sul-americana, a solução pacífica de controvérsias na América do Sul, a possibilidade de uma melhor relação entre a América do Sul e a África, um melhor balanço do poder mundial.

Serra é autor de um projeto de lei que altera as regras de exploração do pré-sal, retirando a participação obrigatória da Petrobras. O senhor acha que a política a ser implementada sob sua gestão oferece riscos à autonomia do país?

Não tenho a menor dúvida disso. E não é só nessa área. O Millôr Fernandes tinha uma frase: o fato de eu ser paranoico não quer dizer que eu não esteja sendo perseguido. O fato de não acreditar em teorias conspiratórias não quer dizer que algumas delas não sejam verdadeiras. As coincidências são espantosas.

O pré-sal faz do Brasil uma grande potência do petróleo, dando predominância à Petrobras. Tem também a energia nuclear, o Brasil seria o sexto país do mundo a ter submarino de propulsão nuclear.

Ao mesmo tempo caem em cima do BNDES, que é o principal instrumento para presença de empresas brasileiras no exterior. E ainda tem essa destruição em massa das empresas nacionais envolvidas na Lava Jato, o capitalismo nacional praticamente está acabando.

Serra anunciou que a política externa não vai mais se orientar pelos “valores de um partido”. Essa declaração faz sentido para o senhor?

A política externa, quando é de direita, é de Estado. Quando é de esquerda, é de partido. Essa é a visão. Partido não são só os partidos políticos, é uma certa ideologia. Quando o Brasil resolve fazer uma abertura e privatizar toda a sua economia, isso não é partidário? O que é do outro é ideológico, o que é seu é de interesse público.

Os princípios que estão na Constituição, independência, autodeterminação dos povos, direitos humanos, tudo isso é política de Estado. Agora, a maneira de você implementar isso varia de partido para partido.

Há muitas críticas com relação ao esvaziamento do Itamaraty durante o governo Dilma. O senhor acredita que o Itamaraty vá se fortalecer a partir de agora?

Se você tem um Itamaraty forte, mas agindo no sentido errado, é pior para o país. Os governos militares no início não enfraqueceram o Itamaraty. No entanto, ficou muitos anos a serviço da política intervencionista, favorecendo o colonialismo português na África, com o Salazar, apoiando a invasão da República Dominicana.

Se você usar o poder do Itamaraty para chegar a um acordo tipo TPP com os EUA, enfraquecer o Mercosul, para o país não resolve nada. O Lula tinha uma sensibilidade especial para o Itamaraty que poucos tiveram. Foi a primeira vez na história que todos os embaixadores eram diplomatas de carreira, no segundo mandato. Precisou de um operário para fazer isso.