Laura Carvalho: Temer é contraditório e sem agenda pró-crescimento

“Um dos piores absurdos já propostos no país”. Assim a economista Laura Carvalho classifica a Proposta de Emenda Constitucional 241, projeto da gestão Michel Temer que pretende limitar o crescimento do gasto público por 20 anos. Para ela, a iniciativa não garante a melhoria na situação fiscal, mas é profundamente ideológica e reduz o papel do Estado na economia. Na sua avaliação, o governo interino é permeado por contradições e não tem uma agenda para retomar o crescimento e o nível de emprego.

Laura Carvalho

Professora do Departamento de Economia da FEA-USP, Laura aponta que, apesar do discurso da austeridade, o governo tem utilizado o enorme déficit fiscal aprovado no Congresso para conquistar e retribuir apoios ao processo de impeachment e à gestão.

“Se, de um lado, houve uma promessa para setores da sociedade – principalmente os economistas, o mercado – de que seria um governo que cuidaria do fiscal, que seria conservador e ortodoxo com as contas públicas e que teria uma equipe econômica mais técnica; do outro lado, o que a gente vem assistindo até aqui é, na verdade, um governo preocupado em se estabilizar e em recompensar aqueles que apoiaram o golpe, (…) com um custo para as contas públicas”, disse, durante conversa com o Portal Vermelho, na última quarta-feira (3).

De acordo com a economista, essa retribuição está refletida, por exemplo, na liberação de recursos contingenciados para ministérios e em projetos como a renegociação das dívidas dos estados e o reajuste para magistrados. Para Laura, a aprovação de uma meta fiscal mais larga não seria preocupante se tivesse acontecido em nome de investimentos públicos que gerassem crescimento e emprego. “Mas, ao que parece, é um déficit maior fruto de fisiologismo”, critica.

Um Estado como o do Afeganistão

Sem preocupação com um ajuste de curto prazo, o governo propõe uma mudança estrutural, de longo prazo – a PEC 241, que pretende restringir o crescimento dos gastos públicos à inflação do ano anterior. “O que ficou como promessa é o teto de gastos, que, no fundo, tampouco garante a melhora das contas públicas – porque não dá para saber o que vai acontecer com a receita –, mas que é ideológico e reduz o tamanho do Estado na economia”, diz.

Laura Carvalho projeta o que significaria a regra fiscal defendida por Temer e seu ministro da Fazenda, Henrique Meirelles. De acordo com as estimativas, a aplicação da PEC significará equiparar o Brasil a nações que não concebem o estado como agente da promoção social e organizador da economia.

“As contas mostram que, se a gente aplicasse agora a regra, a gente chegaria, em 20 anos, à metade do tamanho do nosso Estado. Ou seja, um gasto de 40% do PIB passaria para 20% do PIB. E isso se a gente crescer pouco; se crescer muito, a redução é maior ainda. Isso é mais ou menos o tamanho do Estado no Afeganistão, em alguns países da África Subsaariana. Equivale a países que não têm Estado de bem-estar social”, compara.

A economista ressalta, contudo, o caráter antidemocrático de promover essa mudança, que vai na contramão daquilo que a população deseja. “Isso [o Estado social] foi uma decisão que a sociedade tomou, com a Constituição de 1988, e que foi renovada nas últimas quatro eleições presidenciais”, afirma.

Ela resgata que, mesmo nas manifestações de 2013 e nos protestos pró-impeachment, os participantes nunca se colocaram contrários ao papel do Estado como prestador de serviços públicos, pelo contrário.

“Os brasileiros não são contra um sistema de Saúde e Educação públicas universais. Pelo contrário, querem melhorar esses serviços. Então só mesmo um governo sem legitimidade poderia cogitar uma proposta como essa, que certamente eliminaria qualquer possibilidade de serviços públicos universais, mesmo na qualidade ainda insuficiente que a gente tem hoje”, condena.

Base sem solidez

Laura, contudo, acredita que o governo enfrentará dificuldades de fazer valer a PEC 241, cuja admissibilidade foi aprovada nesta terça (9) na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, em meio a debates acalourados.

Para a economista, há divergências, inclusive dentro do governo e no Parlamento, sobre a iniciativa. “Não sabemos se isso será realmente aprovado. O PMDB, ao contrário do que alguns acham, não é um partido neoliberal, até porque há um pouco de tudo ali, mas certamente é um partido que se beneficia do próprio tamanho do Estado”, apontou, expondo uma das dificuldades da base governista.

“São essas contradições que fazem com que alguns que apoiavam agora estejam desembarcando do golpe e que o governo tenha internamente brigas cada vez mais evidentes. Quer dizer, está ficando claro que o pacto criado não tem exatamente a robustez e solidez que se estava vendo”, alerta.

Além do mais, Laura prevê que a resistência da população a uma medida tão dura seria enorme. “E um governo que ainda está preocupado em se estabilizar pode ser que não faça”, avalia.

Uma desculpa contra os direitos

Segundo a professora, mesmo que o impeachment seja aprovado em definitivo, haverá dificuldades para fazer avançar a PEC. Uma delas seria o fato de que, apesar de draconiana no longo prazo, a proposta teria poucos efeitos fiscais imediatos.

“Esse teto, apesar de parecer muito rígido – e é no longo prazo -, no curto, não é. Porque a regra estipula que o total de despesas do governo de um ano seja reajustado apenas pela inflação do ano anterior. E, quando a inflação está caindo ao longo do tempo, isso significa que as despesas continuam crescendo em termos reais”, explica.

Como exemplo, ela estima que, se a inflação foi de 5% no ano passado e este ano será de 2%, o reajuste dos gastos públicos previsto na PEC seria de 5%. “Então você tem um ganho. E é nesse ponto que a gente está hoje. Então, até 2019, nem haveria ajuste. O efeito viria quando a economia começasse a crescer e a inflação já estivesse estabilizada na meta. Para o governo, não custa tanto do ponto de vista fiscal. Ele faz se tiver o apoio para fazer, porque não é ele que vai pagar o pato de ter que realmente cortar essas despesas”, coloca.

Por outro lado, a economista defende que a PEC serve como justificativa para apresentar medidas duras e antipopulares, que retiram direitos e garantias sociais, em nome da questão fiscal.

“Funciona como uma desculpa para aprovar a reforma da Previdência, para alterar o sistema de Saúde pública e de Educação, o que eu acho que o governo quer fazer – tem pressões para alterar de diferentes maneiras, para sucatear esses serviços -, mas não está claro se terá apoio dentro do Congresso ou mesmo do governo para isso”.

O próprio Henrique Meirelles, em artigo publicado neste domingo (7), na Folha de S.Paulo, reconhece que a PEC tem efeito de longo prazo e rompe com o estabelecido na Constituição. “É um processo longo frente à demanda por soluções imediatas, mas rápido para uma mudança estrutural na trajetória de elevação das despesas resultante da Carta de 1988”, escreve.

Misticismo econômico

Apostando suas fichas na iniciativa privada, o governo Temer tem dito que a situação da economia deverá melhorar à medida que voltar a confiança no país. E, para isso, seria preciso o governo dar sinais de compromisso com a saúde das contas públicas, por exemplo, aprovando o teto para os gastos.

Na avaliação de Laura, contudo, não é bem assim. “Esse discurso de que a credibilidade vai voltar e as coisas estarão resolvidas está no campo da mística, eu não acredito nesse tipo de reação”, rechaça.

De acordo com ela, no entanto, o ajuste fiscal promovido no ano passado pelo governo de Dilma Rousseff foi extremamente forte e ajudou a derrubar a economia, um impacto que a atividade não sofrerá este ano.

“Houve uma contração tão grande de gastos no governo Dilma e, apesar das pessoas acharem que não, os investimentos públicos caíram mais de 35%, o déficit era menor do que é hoje. Então houve um grande ajuste em 2015 que não vai acontecer em 2016, então isso certamente vai ter um impacto menor [na economia]”, disse, acrescentando ainda as consequências negativas da Operação Lava Jato, da crise política e da seca, que abalaram a economia no ano passado.

Apesar do cenário mais favorável em 2016, Laura não acredita em uma retomada. Não vê iniciativas propostas nesse sentido. “Não espero uma retomada, porque não estou vendo nenhuma agenda na mesa para a retomada. Não tem agenda de crescimento, não tem agenda de emprego. O governo até aqui ignorou. A agenda é ajuste ou não ajuste, privatizar ou não privatizar. Não é uma agenda que coloque a questão do emprego de forma explícita. Coloca como se o resto fosse animar uma população que está claramente desconfiada, segundo as pesquisas”, analisa, cética.

Um governo em disputa

Em meio aos desencontros da gestão, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, tem pressionado Temer para que a Secretaria do Orçamento, hoje dentro do Ministério do Planejamento, seja deslocada para seu domínio. Para Laura, o episódio expõe a disputa por poder dentro do governo.

“O que está parecendo é que quem está, realmente, fazendo as contas, propondo orçamento etc é o Dyogo Oliveira, ministro do Planejamento. Primeiro porque quem estava com poder na equipe econômica, antes, era o Romero Jucá, como o próprio Temer declarou. Foi quem fez o plano de orçamento, antes de ser afastado. Quem está fazendo as propostas, as contas, quem já estava na máquina pública, com noção de como se faz, das provisões de receita, era o Ministério do Planejamento. Então eu acho, ainda mais considerando as pressões políticas que existem dentro desse governo de diferentes naturezas, que quem está comandando essa parte ainda é o Dyogo”, opina.

E completa, avaliando que, no entanto, Meirelles parece estar conquistando espaço. “O que me parece é que o Meirelles está ganhando força, com apoio do mercado financeiro, de setores empresariais da sociedade que querem que o ajuste seja maior, que não querem aumento de impostos. Mas ainda há uma disputa interna. Claramente Temer oscila e não mostrou ainda a que veio – o que está descontentando todos os lados ao mesmo tempo”, encerra.