Aquarius e Julieta – Kleber e Almodóvar

Aquarius entrou em cartaz com cinco estrelas. É o que eu daria. Kleber Mendonça Filho, que escreveu e dirige o filme, vem se caracterizando por uma cinematografia vigorosa, sensível e que retrata uma dimensão de Brasil com raro talento dramático e com mão precisa.

Por Walter Sorrentino*, em seu blog

Aquarius - Divulgação

O filme desfila um microcosmo das relações ambíguas (ou dúplices?) entre segmentos sociais, a intolerância surda nessas relações. Gera reflexão e impressões indeléveis do que é o Brasil atual.

Extremamente sensível, os silêncios e as entrelinhas vão cadenciados na narrativa, os dramas se sobrepõe numa teia de mal-estar que vão crescendo, extravasando em algum momento num clímax. O som ao redor já foi isso. Mais uma vez, em Aquarius, o final é a não-redenção dos acontecimentos, fazendo diferir indignação de intolerância.

Aliás, Mendonça Filho salientou que há um paralelo “realmente fantástico” entre o que acontece em Aquarius e o cenário político do Brasil, mas que a narrativa não é datada: o roteiro foi escrito entre 2012 e 2013, e as filmagens foram feitas há um ano.

Diz-se que os argentinos se expressam melhor na cinematografia, expõe nela um certo “caráter nacional”. Acredito que tenha relação com o fato de ter a classe média como personagem matriz desse caráter, num país que fez uma revolução educacional precoce em nosso continente sul-americano e alcançou níveis de civilidade elevados. É certo que esteja mudando essa realidade social, mas o caso é que sua cinematografia sintetiza isso e alcança universalidade que estende seu sucesso entre nós e no mundo todo, porque dá aos estrangeiros muito mais que imagens e temas estereotipados que marcam certa cinematografia brasileira, felizmente em mudança com essa safra vigorosa de novos diretores.

Talvez Kleber tenha captado isso nas mudanças sociais que ocorrem entre nós, tomando como ponto de convergência a classe média recifense, alcançando também, sem dúvida, universalidade para nos falar do Brasil e dos brasileiros. Junto a isso, é de celebrar a maestria que o diretor expressa no tema e na mão segura com que dirige um monstro sagrado como Sonia Braga, refletindo em seu semblante toda uma gama de emoções, sentimentos e indignações que perpassam seu cotidiano.

Nota dez. O filme é ainda maior que o sucesso de seu lançamento, no Festival de Cannes, quando a equipe de Aquarius — entre eles o diretor Kleber Mendonça Filho e a protagonista Sônia Braga — mostrou cartazes em inglês e francês com os dizeres “Um golpe está acontecendo no Brasil”, “54 milhões de votos foram queimados” e “Dilma, vamos resistir com você” em protesto contra o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Em sua conta oficial no Twitter, Rousseff agradeceu o apoio de todos. O protesto causou polêmica imediata nas redes sociais e alguns internautas a favor do impeachment chegaram a organizar um boicote ao filme.

Julieta, de Pedro Almodóvar, é uma pérola, desses filmes que ficam na história do cinema. Plasticamente precioso, de enorme energia criativa, como sempre em Almodóvar. Num roteiro baseado em Alice Munro. Tem enorme sensibilidade e leveza ao tratar de tema dramático que fala de amor e ausência, emociona e faz pensar no tempo presente de fraturas humanas.


Cena de Julieta
 

A crítica, em parte, disse que lhe falta ousadia, ou que Almodóvar está “mais contido”. Eu, o que vejo, é uma maturidade maior do cineasta, sem o frenesi que marcou sua obra em tempos anteriores. Sem o apelo melodramático teatralizado.

Também nota dez, cinco estrelas. Ou seja, imperdível.

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Em ambos, o pano de fundo que marca este tempo histórico: as mulheres, sua emergência em visibilidade, seus dramas e sua sensibilidade própria. Uma força que se faz protagonista social de primeira linha, que sobrepôs à luta emancipacionista – face à sonegação de iguais direitos – a exigência de reconhecimento em sua identidade de gênero. Elas, apesar de violência que enfrentam, são as vitoriosas do tempo.