Guerra e paz na fronteira do Brasil com o Paraguai

Lúcio Villagra e Milciades Santacruz provavelmente interromperam alguma conversa paralela quando, diante de um semáforo fechado em umas das avenidas mais movimentadas de Pedro Juan Caballero, cidade paraguaia fronteiriça com o Brasil, perceberam a existência de dois jovens encapuzados e aparentemente distraídos em uma motocicleta ao lado da picape que dirigiam.

Por Vinícius Mendes

Pedro Juan Caballero - Divulgação

No mundo do narcotráfico – aquele em que viviam desde adolescentes – essa é uma das situações em que se torna possível ver a morte mais de perto. Tranquilizaram-se, porém, quando o farol mudou de cor e, diante de uma arrancada suave da camionete, notaram que os dois motociclistas haviam virado uma rua paralela.

Santacruz deve ter achado graça do temor momentâneo porque, ainda pelo retrovisor, talvez tenha conseguido ver que a motocicleta que interrompeu a conversa com seu companheiro estava pintada de rosa. Nenhum sicário ou capanga armado andaria em um veículo daquela cor. O papo provavelmente prosseguiu durante os dez minutos anteriores ao reencontro com os motociclistas, em outro semáforo da mesma avenida, quando os sicários despejaram dezenas de tiros de submetralhadoras que atingiram os dois rapazes na camionete à queima-roupa. Villagra, ao volante, morreu no mesmo momento. Santacruz agonizou por algumas horas no hospital da cidade antes de falecer.

Segundo testemunhas ouvidas pela imprensa local, eles eram membros de um dos grupos responsáveis pelo tráfico de drogas entre Paraguai e Brasil e que, desde junho deste ano, estão em estado de guerra. Apesar da falta de dados oficiais, se estipula que mais de 40 pessoas foram executadas nos últimos dois meses, média de um assassinato a cada dois dias.

“Não é uma guerra oficializada, porque não se trata de dois Estados em disputa, mas é uma guerra considerando que o conceito desse termo gira em torno da luta por um território. Neste momento é o que está acontecendo na fronteira entre Paraguai e Brasil: grupos fortemente armados brigando pelo controle do corredor de drogas cuja sede é Pedro Juan Caballero”, explica o jornalista e escritor Mauri König, um dos jornalistas especializados na região e que recentemente produziu um especial sobre o conflito para o jornal Folha de S. Paulo.

“Essa guerra não é notada por quem vive mais distante da fronteira, como os moradores de Curitiba, Porto Alegre, ou até dos grandes centros brasileiros, como São Paulo, mas quanto mais perto você vai chegando da região, mais vai sentindo a áurea desse conflito. Em Pedro Juan Caballero as pessoas estão vivendo acuadas”, completa.

O que desencadeou a disputa na região, em junho, foi o assassinato do traficante Jorge Rafaat Toumani, cuja nacionalidade sempre foi desconhecida. Na fronteira, onde era conhecido por políticos e habitantes das periferias, diziam que era paraguaio, apesar de ter sido registrado no Brasil. Sua morte chamou a atenção da imprensa mundial não apenas pelo posto importante que ocupava na geografia do narcotráfico internacional como pela maneira como ela deu: mesmo escoltado por cerca de 30 homens armados com fuzis e dentro de um jipe blindado, Rafaat foi alvejado por rivais armados com uma metralhadora calibre 50, usada por exércitos nacionais e cujo poder de fogo pode perfurar até uma parede de aço blindado. Tudo aconteceu há poucos metros da sede da Polícia Nacional paraguaia e há duas quadras do território brasileiro.

O tiroteio entre seus seguranças e os homens responsáveis pelo atentado teria durado quatro horas pelas ruas de Pedro Juan Caballero, gasto 1.400 balas de munição e destruído metade da fiação telefônica da cidade, que só foi restituída no dia seguinte. Prédios e lojas de sua propriedade foram incendiados e seus capangas mais conhecidos também foram mortos.

No meio do fogo cruzado, picapes desgovernadas e transeuntes tentando salvar a vida, ficou o corpo ensanguentado de Rafaat ao volante do luxuoso jipe que dirigia.

Mais do que exibição do poder bélico dos seus inimigos, sua ausência abriu uma brecha fundamental para os cartéis da droga do continente: o controle sobre um dos corredores mais lucrativos para exportação de entorpecentes da América do Sul e, quiçá, do mundo. Segundo König, dois grupos principais se confrontam desde junho na região: os homens que querem manter o poder do falecido Rafaat e o exército particular de outro poderoso traficante, Jarvis Chimenez Pavão, que, para derrotar o rival, aproveitou-se também da força bélica do Primeiro Comando da Capital (PCC), do Brasil.

“O Paraguai é um país fundamental para o narcotráfico porque, ainda que não seja um produtor de drogas, como Bolívia e Peru, é apenas pela corrupção de suas instituições públicas que esses entorpecentes podem ser distribuídos livremente pelo continente”, explica König. Uma estimativa abstrata da inteligência paraguaia acredita que o negócio do tráfico na região movimenta US$ 3 milhões líquidos mensais. Segundo a ONU, o Brasil é um dos principais exportadores de cocaína do planeta, situação que passa também pela liberdade com que a produção entra no território nacional.

Nem a Polícia Nacional Paraguaia nem a Polícia Federal brasileira conseguiram responder até agora quem foram os estrategistas que promoveram a morte de Jorge Rafaat. No dia seguinte ao assassinato cinematográfico, o Paraguai deteve oito homens, sendo um deles brasileiro: o carioca Sérgio Lima dos Santos, suspeito de ser o operador da arma antiaérea que despejou os 16 projéteis sobre o traficante. Além do PCC, o Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro, o Exército do Povo Paraguaio (EPP), do Paraguai, e os vários grupos de traficantes que transitam entre Ponta Porã (MS) e Pedro Juan Caballero (Paraguai), são suspeitos de organizar a emboscada.

Desses, o PCC e Pavão são os que têm mais acusadores. Segundo as polícias nacionais, o grupo paulista pretendia assumir o controle do tráfico na cidade paraguaia há quase uma década, mas só conseguiu penetrar minimamente na área no começo desse ano, quando um intermediário da facção brasileira dono de três identidades – Oliver Giovanni da Silva, Elton da Silva Leonel e Ronaldo Rodrigo Benites – conhecido como “Galã” se aliou a Pavão, apelidado de “El Barón”.

Pavão, que da mesma forma que Rafaat tem nacionalidade desconhecida, está preso no Paraguai há sete anos cumprindo pena por tráfico de drogas. No país vizinho se diz que ele é o principal contato do PCC na região e que foi ele quem determinou o ataque ao poderoso traficante em Pedro Juan Caballero, em junho, logo após firmar oficialmente o acordo com a facção brasileira. Ao jornal paraguaio ABC Color nesta semana, Jarvis disse que Rafaat era seu amigo. “As suas ideias me encantavam. Não sei como ele me via, mas eu o considerava assim”. Ele nega que tenha qualquer contato com o PCC, mas deixa no ar certo conhecimento sobre a associação: “Eles têm idealismo”, opinou.

Sob o suposto controle da facção brasileira, a região não teve paz depois que Rafaat morreu. Quatro dias após seu assassinato, três homens foram mortos a tiros em Pedro Juan Caballero, sem que ninguém saiba dizer quem eram os atacados e quem foram os atacadores. Um dia depois, cinco rapazes foram alvejados com mais de cem tiros de fuzil em Paranhos (MS). Desde então, os estampidos de tiros se tornaram cotidianos para os moradores das pequenas cidades que fazem parte da fronteira quilométrica entre Brasil e Paraguai. Os últimos assassinados foram justamente Lúcio Villagra e Milciades Santacruz.

“Estão acontecendo cinco ou seis mortes por semana, a maioria por causa do narcotráfico”, disse um policial brasileiro alocado na fronteira à BBC Brasil. “Com os armamentos que os criminosos têm, metralhadoras calibre 0.50 ou 0.30, poderiam nos atingir sem sair do Paraguai. Seria uma catástrofe se tentassem atacar a gente”, completa o vice-presidente do Sindicato dos Policiais Federais do Mato Grosso do Sul, Carlos César Meireles da Silva. O posto policial do Brasil fica a 100 metros da entrada de Pedro Juan Caballero.

Em um grupo de habitantes de Ponta Porã ouvido pela reportagem da Calle2 percebe-se diversos sentimentos que, no entanto, rodeiam um central: o medo. Enquanto alguns demonstram uma tranquilidade real, outros tentam expressá-la apenas em palavras.

“Os assassinatos são esporádicos e acontecem apenas entre as pessoas envolvidas com os grupos criminosos. Se você não faz parte deles, pode viver tranquilamente na fronteira. Arrisco a dizer que é até mais calmo do que São Paulo”, conta Antônio, consultor brasileiro que trabalha no lado paraguaio.
“Estamos acuados dentro de nossas casas. Não apenas pela violência tradicional, mas também porque depois da morte de Rafaat todo mundo percebeu a força bélica que esses grupos possuem. Nenhum traficante mataria um inocente, mas nos ataques aos rivais não existem mais distinções. Se é ser humano e está perto, morre”, discorda Cássia, que também transita entre os dois países. Os nomes dos entrevistados, a pedido deles, são fictícios.

“A guerra vai acabar quando um grupo finalmente vencê-la e dominar o posto deixado por Raafat. Então, outro grupo rival começará lentamente a se formar até que adquira condições de lutar por esse território. Assim, sempre teremos momentos de guerra e de paz na fronteira”, finaliza Mauri König.