Phillipe Pessoa: Valmor estava morrendo

Tramita no Congresso Nacional a PEC 241 que congela gastos públicos por vinte anos nas áreas sociais, em especial saúde, educação e assistência social. A proposta tem como único objetivo atender aos interesses do sistema financeiro e seu impacto será desastro sobre a grande maioria do povo brasileiro. Uma parcela do povo perambula pelas ruas da cidades em situação de abandono e as consequências, muitas vezes, são trágicas, como mostra o relato do estudante Phillipe Pessoa.

Moradores de rua

Conheci Valmor na madrugada do dia 29 de agosto. O domingo anterior havia sido chuvoso e estava bastante frio. Caminhava pela avenida São João na Santa Cecília, região central de São Paulo, na direção dos bairros, contra o fluxo dos carros, na altura da estação Marechal Deodoro do metrô, quando passei por Valmor. De imediato, não percebi a gravidade da situação ao meu lado. Infelizmente a cena é friamente cotidiana na dura na capital paulista. Pessoas se acomodando no concreto empoeirado, sujo e gelado das calçadas. Pessoas vestidas em farrapos, cobertas em farrapos, sob caixas de papelão e qualquer coisa que encontre para tornar mais aconchegante qualquer canto frio e úmido em que se possa escorar. Não me chamou atenção sequer o fato de, sob um clima chuvoso, que alguém pudesse escolher um lugar não coberto para deitar. Alguns metros após passar por ele, ao olhar para trás, noto que dois outros homens, enrolados em cobertores velhos, também em situação de rua, chegam próximo a Valmor. Fiquei apreensivo não sabendo o que se tratava e podendo, inclusive, tratar-se de alguma briga entre eles.

– "Ô, maluco, você quer morrer?!" Ouvi um deles falando para Valmor.

Ao me virar para entender o que se passava, um homem de nome Ricardo, depois descubro, passa a me interpelar.

– "Oi, ele está morrendo! Ajuda ele! Nós não podemos contar com ninguém!"

Foram essas algumas das frases que ouvi naquele momento.

Minha atenção agora focava-se na pessoa à minha frente, cuja vida esvaia-se a cada minuto. Só aí pude prestar atenção no ser humano que estava ali, morrendo. Homem, negro, extremamente magro, pele e ossos, era uma das coisas que mais impactou. Não sabia aferir a idade, pensava cerca de quarenta anos, depois soube, por ele, que tinha minha idade, 29 anos. As vestes – um gorro bege, uma calça azul fina e uma jaqueta de pano preta – e cobertas que usava, elas estavam completamente encharcadas. Ele tremia muito, estava hipotérmico. Não respondeu verbalmente a nenhum contato, mas seus olhos acompanhavam a ação. Próximo a ele notei ainda alguns alimentos e uma marmita – tudo estava mal tocado. Sua mão estava gelada. Ele estava todo gelado. Declarei que estava chamando ajuda e alguma palavra que pudesse inspirar resistência. Liguei para o atendimento da prefeitura e para o SAMU.

Pediam muitos dados e informações. Protestei diversas vezes. Ele está morrendo! Por favor mandem alguém! Não diminuiu as perguntas inconvenientes, para aquele momento, nem nossa ansiedade. Parei carros de polícia e ambulâncias que passaram pelo local. Uma viatura disse que reforçaria o pedido de socorro ao SAMU. Pensei em parar um táxi e levá-lo ao hospital, mas tinha muito medo de movê-lo. Sua aparência era tão fragilizada que eu pensava que podia quebrar algum dos ossos expostos pela subnutrição. Ricardo e o outro homem permaneciam próximos, acompanhando o socorro e me ajudando a interpelar. Contaram que ele estava ali, estirado no canteiro lateral da avenida, em frente à estação de metrô, desde a manhã do dia anterior e que lá permanecera mesmo debaixo de chuva. Seguranças da estação chegaram a abordar o homem, provavelmente sem ter resposta – e possivelmente objetivando somente que ele buscasse outro local para deitar. Eram momentos de alerta e angústia pela espera. Liguei ao SAMU novamente algumas vezes para insistir na emergência da situação. Uma outra viatura parou ao nosso lado depois de muito tempo e estes policiais pegaram um tapete seco e ajudaram a movê-lo, com cuidado, para a superfície seca.

Em seguida, enfim, chegava o SAMU. Colocaram Valmor na maca, e dentro da ambulância. Pedi para ir junto com o resgate. Tinha muito receio de deixá-lo sozinho. Achava que podiam negligenciar socorro e atenção a ele. Não seria de admirar-se dado o tratamento cotidiano reservado à população em situação de rua. Felizmente, não foi o que ocorreu, pude atestar. Na ambulância,a enfermeira removeu as roupas molhadas e o envolveu em um cobertor especial, laminado. Valmor tremia muito ainda e tinha alguns espasmos, convulsões. Ajudei a contê-lo. Em seguida, a socorrista tentava aferir temperatura, pressão e pulso. Sem sucesso. Sua condição era tão crítica que não era possível medir tais parâmetros. Contudo, a informação suficiente era nítida a qualquer um: ele estava morrendo. Chegamos até a Santa Casa de Misericórdia, próximo de onde Valmor estava.

Valmor entrou direto no hospital e eu fiquei na recepção, acompanhando o registro. Naquele momento, Valmor não tinha nome, não sabíamos, registraram ele sob algum número. Perguntei por notícias dele, disseram que ele estava na emergência e sendo atendido, que o caso era grave. Horas depois, e depois de muitas perguntas sob a condição do “homem que estava na rua”, uma enfermeira permitiu que eu fosse até seu leito e o visse por alguns momentos.

Foi a última vez que o vi. Ali pude ver com maior clareza a condição em que se encontrava. Seu rosto e membros muito finos, secreções brancas pelo corpo, ferimentos. Observei o prontuário, verifiquei o tratamento em andamento e tentei conversar com ele. Ele estava nitidamente confuso e a voz não tinha força, não foi uma conversa linear. Repeti as mesmas perguntas algumas vezes, mas obtive algumas informações. Disse-me seu nome e idade. Perguntei sobre família e ele me disse que tinha casa e família em Guaianases. Perguntei se sabia do telefone de alguém. Ele tentou soletrar um número, mas era muito difícil compreendê-lo. A residente do plantão notou minha presença. Falei com ela sobre o que ele tinha me dito e ela pareceu incrédula. Disse que ele não estava respondendo a estímulos. Logo percebi o motivo, ela o perguntava com impessoalidade e rispidez, já esperando que as respostas não viriam. Com minha ajuda, passou a fazer perguntas, algumas completamente desnecessárias e moralistas como “Você bebe?” “Você usa drogas?”. Questionei a finalidade daquelas perguntas, mas sem criar constrangimentos. No prontuário de Valmor, anotei as informações que ele passou, inclusive o que pude entender do número que soletrou, além do meu próprio nome e número de telefone para contato. Disse à jovem médica para me ligarem caso tivesse qualquer alteração no quadro dele. Voltei-me a Valmor e despedi-me.

A socorrista do SAMU havia me dito que era possível que tivesse doenças de base – doenças crônicas como tuberculose e AIDS – que justificariam seu estado, em especial a magreza de seu corpo. Perguntei aos profissionais do hospital sobre esta hipótese, mas informaram que esta investigação não poderia ocorrer ali, e sim, após alta, a partir dos postos de saúde. Alí cuidariam do quadro crítico de hipotermia. Procurei notícias sobre Valmor ao longo da semana, pelo telefone e pessoalmente, por duas vezes. Nas duas vezes em que estive, não pude vê-lo porque não estava no horário de visitas. Contudo, as informações eram mais animadoras, de que ele teria saído do quadro crítico e estava respondendo bem, além de que os exames clínicos não registravam outras alterações. Conversei com a assistente social e ela me disse que havia conversado com Valmor, e que ele teria declarado que não gostaria que buscassem pela família – desejo que seria respeitado, pois ele estava orientado. Perguntei sobre o que aconteceria com ele. A resposta foi dura. Após recuperar-se, voltaria para a rua. Ainda busquei informações depois disso, mas me cabia respeitar a autonomia de Valmor. Na semana seguinte assumi que ele estaria de volta nas ruas.

No dia 26 de setembro, recebi uma ligação de um número que não reconheci. Do outro lado da linha uma senhora perguntou se fui eu quem encontrou uma pessoa na rua e levou para o hospital. Era Alaíde, mãe de Valmor. Tivemos uma conversa muito emocionados, ela agradecia por eu ter salvado seu filho. Naquele momento, fiquei muito feliz por saber que a família de Valmor o tinha encontrado. Foi frustrante imaginar que ele poderia ter voltado às ruas e a todos os elementos que o trouxeram àquela situação crítica de vida. Saber que ele teria mudado de ideia e que a assistência social pode localizar sua família foi reconfortante. Soube que Alaíde não tinha o filho único por perto havia dez anos. Fugira de casa. “Meu filho se perdeu na droga” declarou. Havia o visto pela última vez há dez meses, nas ruas de São Paulo. Também recebi novas notícias sobre Valmor.

Para minha surpresa, quase trinta dias após nosso fatídico encontro, Valmor continuava hospitalizado. Soropositivo para HIV, diversas infecções, pneumonia. Não estava mais em São Paulo e não pude ir ao hospital para compreender mais precisamente seu quadro clínico. Alaíde mandou fotos. Ele continuava extremamente fraco. Sempre que conversamos pedi detalhes de seu estado clínico. Algumas vezes parecia que o quadro estava evoluindo bem, com perspectiva de alta em alguns dias – o que preocupava uma mãe que não teria como cuidar de alguém na condição em que ele estava. Ela foi orientada a procurar um hospital de retaguarda em Mogi das Cruzes. Não houvessem vagas nos leitos, teria que levá-lo pra casa, independente de sua condição. Dias depois, conseguiu a vaga no hospital. Só que o quadro real de Valmor não era tão animador como deixava transparecer os primeiros relatos. As infecções e subnutrições persistiam. Em alguns momentos ele ficava confuso e nervoso, talvez por abstinência de entorpecentes.

Alaíde compartilhou comigo angústias e pequenas alegrias deste período. O filho pedia doces, balas, cachorro quente. “Só quer comer besteira”, dizia com a falsa raiva de toda mãe que cede a mimos de um filho. Contava do chamado que recebeu do hospital na madrugada anterior, informando que o filho chamava por ela. Contava do relato das enfermeiras, que diziam que ele havia chegado bem pior, e já tinham testemunhados casos semelhantes que se recuperaram. Não cansava de mencionar sobre o gesto que tive de socorrer seu filho, ainda que eu não visse nada extraordinário no ato.

Numa manhã recente, recebi da mãe a notícia da morte de seu filho. Aos prantos, me contou que Valmor não tinha resistido às infecções. Mesmo nesse contexto, voltava a me agradecer e abençoar por tudo que tinha feito a seu filho.

Este era o relato que eu tinha para compartilhar, sobre uma pessoa que passou brevemente pela minha vida, sobre alguém sobre o qual minha curiosidade pairou, traçou expectativas de melhoras, superação e reestruturação social. Um jovem que fugiu de casa aos 19, que se instalou nas ruas, que se entorpeceu, contraiu HIV, desenvolveu dependência química e AIDS, e não mais resistiu. Um jovem cuja história é única, mas se parece com a de muitos. E dói profundamente pensar nestas muitas pessoas morrendo cronicamente nas ruas da cidade de São Paulo.

Notas:

I. Alaíde, que mora sozinha e é auxiliar de limpeza em uma fábrica de Guarulhos, teve de arcar com custos para transferir o corpo do filho até Guaianases e providenciar o enterro. Não conseguiria ver seu filho, depois de dez anos nas ruas, ser enterrado como indigente. Pediu emprestado a alguém da igreja e, por isso, ainda precisa de muita solidariedade para pagar os cerca de R$ 3500,00 que deve.

II. Sobre o serviço de socorro e saúde prestado a Valmor, devo dizer que ele recebeu tratamento adequado na Santa Casa. Não deixei de relatar contradições no tratamento recebido por ele e nas comunicações com a família e comigo, mas reconheço que foi graças ao SAMU e à Santa Casa que Valmor pôde ser socorrido e tentar viver. Houve demora na chegada do SAMU, mas ele veio e prestou atendimento rápido e adequado. Fui informado que não seria feito investigação infectológica, mas ela foi realizada e o tratamento iniciado. Houveram informações desencontradas, mas ele não deixou de ser tratado. Hoje leio notícias de que o governo ilegítimo corta o orçamento da saúde ameaçando a continuidade no SAMU e outras políticas de saúde em todo o país. O SUS precisa ser valorizado e fortalecido para continuar atendendo a todos cada vez melhor