A Montanha dos Sete Abutres e a tragédia da Chapecoense

Vendo o modo como são tratados os fatos relacionados à tragédia que vitimou dezenas de pessoas na queda do avião na Colombia, é impossível não lembrar de três filmes: a Montanha dos Sete Abutres (1951), de Billy Wilder, O Abutre (2014), de Dan Gillroy e Carancho (2010), este dirigido por Pablo Trapero, com atuação de Ricardo Darin. Em todos os filmes há algo em comum: o sensacionalismo e o aproveitamento da desgraça alheia.

Por Lenio Streck*

atanásio girardot chapecoense

A TV Globo extrapolou. Repórteres enfiaram o microfone na cara dos familiares das vítimas, perguntando: como a senhora está se sentido, agora que seu filho não voltará? E a maldita câmera espera o gran finale: as lágrimas. Fotos da infância do jogador. Amigos do colégio. E a pergunta: como vocês estão se sentido? Por certo o amigo ou familiar dirá: me sinto muito bem.

Uma tragédia tem de ser noticiada com alto grau de objetividade. Desculpem-me os jornalistas que acham que tem de dar emotividade na transmissão. Embora seja hoje óbvio na filosofia que uma descrição já é uma prescrição, não é impossível que uma notícia possa ser descrita com o mínimo de subjetivismo ou emotivismo.

É comezinho isso. Tragédias como essa deveriam acender a luz amarela das faculdades de jornalista e comunicação. É ético chafurdar no meio das emoções familiares de quem perdeu um ente querido? É ético correr atrás da notícia para ver as razões pelas quais o filho do treinador Caio Junior não viajou? É ético enfiar o microfone perguntando para ele como ele se sentia em relação a isso? Poxa. Isso me irrita profundamente. Mau jornalismo. Zero para eles.

Escrevo esta coluna na quinta-feira, complemento na sexta para sair no sábado (hoje). Andando pela praça, ouço rádio. Cobertura sensacionalista. Repórter direto de Chapecó. Perguntando detalhes como: quantos esquifes estarão a disposição no estádio? Uma rádio entrevistou um torcedor. Como ele se sentia, perguntou o Einstein esportivo. E o torcedor, com um sotaque alemão: olha, não tenho o que dizer. Muito triste. E o repórter: mas qual eram os jogadores que você mais gostava? Vai sentir falta deles?

Quero cumprimentar a Rádio Grenal – pelo menos pelo que ouvi no programa de quinta pela manhã – pelo modo ligth como comentaram os fatos. A aquisição do Rogério Boelke me pareceu um gol da rádio. Gostei de seu comentário sobre a confiança minimamente necessária ou a “caridade” que devemos ter para com quem escreve, aplicável às relações sociais. O princípio da caridade é um principio metodológico. Correto. E acrescento: para o mundo funcionar, temos que agir pelo principio da confiança. Algo que podemos traduzir como a filosofia do “como se” (als ob, em alemão), desenvolvida pelo filosofo Hans Vahinger. Trata-se da ficção necessariamente útil. Podemos até desconfiar do árbitro. Mas vamos ao jogo. É como se ele fosse honesto. Desconfiamos da comida, mas a comemos. É como se o cozinheiro fosse honesto e não colocasse ingredientes vencidos. É como se o carro à nossa frente não fosse trocar de pista. É o principio da caridade e o principio da confiança funcionando como ficções úteis.

Tragédias como essas colocam em risco nossa confiança. Cumprimentos ao Boelke por ter sido talvez o único jornalista que “pegou a notícia como noticia”. Essa discussão da confiança e da caridade também serve para as coberturas jornalistas. Como vou confiar em alguém que, em vez de me dar detalhes objetivos, opta por arrancar lágrimas de infelizes familiares? Deem-me uma razão para confiar. Quero ser caridoso. Mas não posso.

Como observador, esses subjetivismos todos se transformam em dados objetivos que me obrigam a, inclusive, escrever a coluna denunciando isso tudo e chamando a atenção para a luz amarela que está acesa. O sensacionalismo entra em campo e a ética sai na maca.

Post scriptum: nem vou falar de um (ou dois) jornalista(s) – famoso(s) – que, em programa famoso de rádio do RS, pregou/pregaram que a Chape deveria se licenciar. Sim. No auge da comoção, eis a proposta. Para quê? Para abrir uma vaga…Paro por aqui. Tão infeliz(es) quanto a declaração de F. Carvalho, que comparou a tragédia da Chape com o problema da possível queda do seu time. Pois é. A maca que transporta a ética está à beira do gramado. Pronta para entrar em campo.