Mágoa, raiva e a dor do desemprego

Há dez anos o escritor Moacyr Scliar insistia com os leitores que não deixassem de assistir o novo filme de Costa-Gavras que estreava em Porto Alegre. Escreveu: “não percam (vou repetir: não percam) o filme de Costa-Gavras, O Corte, que acabou de estrear. O personagem principal é um alto executivo que, despedido de sua empresa numa daquelas reorganizações que têm sido tão freqeentes nas economias ocidentais, dedica-se a eliminar possíveis rivais na busca por emprego.”

Por Léa Maria Aarão Reis

O Corte - Divulgação

Scliar se referia ao drama vivido por Bruno Davert em Le Couperet (2005), um competente executivo francês de grande empresa do ramo do papel. Davert perde seu emprego depois de 11 anos trabalhando num alto cargo de CEO. O motivo invocado pela chefia era a flexibilização do quadro de funcionários, manobra que na época começava a ser utilizada com a escusa de economizar e cortar salários. Ação utilizada de tempos em tempos a fim de desqualificar e tornar precário o trabalho para manter o lucro gordo quando a recessão bate na porta. Num desses passaraios (demissão coletiva que se dá de tempos em tempos nas empresas), Davert é rifado junto com vários outros colegas.
 
Dois anos depois ele continua procurando trabalho. Desempregado e humilhado pela nova condição de dependente do salário da mulher e obrigado a abrir mão de pequenos grandes luxos típicos da cultura e da maneira de viver da classe média – venda de um dos dois carros do casal, cancelamento de assinatura de TV a cabo etc. -, o personagem vai se descolando da realidade, é levado pelo desespero a uma existência cada vez mais solitária na qual a raiva e o ressentimento avultam e o fazem tomar uma decisão radical. Obcecado em conseguir recuperar o antigo cargo ou encontrar outro, no mesmo padrão de antes (ao contrário do personagem de Stephane Brizé, em La loi du marché), Davert decide matar o atual ocupante dele e todos os candidatos com potencial para ocupá-lo. Recusa-se a buscar uma ocupação que não faça jus à sua qualificação. Nasce nele a consciência crítica que antes faltava – mas distorcida.
 
O Corte faz parte de uma série de excelentes filmes sobre a ameaçadora sombra do desemprego que ronda os que trabalham e produzem – no mundo, e no Brasil 2016 -, visto neles de diversos ângulos. Mulheres e homens são atingidos; jovens para os quais o acesso ao primeiro emprego vem sendo mais e mais restrito; profissionais regiamente preparados não se sentindo confiantes em seus postos, e os mais velhos, os aposentados que continuam, por contingência, alinhados ao exército de uma força de trabalho gradualmente precarizada. Todos, inseguros.

O fio de narrativa do filme sublinha como se desenrola a reação de raiva e mágoa, e quase sempre o processo de depressão que a ela se sucede. O agudo sentimento de impotência e, algumas vezes, o nascimento de certo senso moral com a avaliação do sistema, nesses indivíduos rejeitados, como Davert, mastigados e tornados dejetos, temporários ou permanentes, pelo mercado formal de trabalho. 
 
Recursos Humanos (2000), com roteiro e direção de Laurent Cantet – assim como Costa-Gavras ele é um autor do cinema político – é uma dessas produções. L’Emploi Du temps (Time Out), de 2001 e L’Adversaire, de Nicole Garcia são baseados numa história verídica, de Jean-Claude Romand que acaba matando a família quando ela está prestes a descobrir que há 18 anos ele não tem emprego. E As Neves do Kilimandjaro (de 2011), do diretor marselhês, Robert Guediguian no qual se discute o papel dos sindicatos enfraquecidos nas sucessivas crises econômicas do capitalismo, sua atuação diante da retração do mercado de trabalho e da dificuldade cada vez maior da inserção nele em condições dignas. O arco a todos abriga: do operário ao executivo.
 
O mais recente desses filmes sobre o desemprego (e a desvalorização do trabalho) que assola o mundo de hoje é de um ano atrás. Talvez seja o melhor deles, em nossa opinião. Trata-se de La loi du marché, aqui traduzido para O Valor de um homem, de Stephane Brizé, de 2015. Ganhou o Cesar, fez enorme sucesso em Cannes e ótima bilheteria internacional, e conta com a interpretação exemplar do ator Vincent Lindon no papel de Thierry, operário qualificado, casado e pai de um adolescente com dificuldades cognitivas, que não consegue recuperar o seu padrão profissional depois da demissão. Acaba aceitando um emprego de agente de segurança em supermercado. Mas o novo trabalho consiste justamente em reproduzir com os clientes e com outros funcionários da loja o mesmo humilhante modelo de dominação ao qual ele próprio, Thierry, vinha sendo submetido. 
 
“Meu trabalho é minha vida. Tiraram o meu trabalho, tiraram a minha vida,” exclama Davert no filme de Costa-Gavras durante uma das várias humilhantes entrevistas para as quais é chamado. Quando a entrevistadora-robô de um departamento de Recursos Humanos indaga como ele se sente, como desempregado, responde agressivo: “Mágoa. Raiva. Todos os desempregados sentem isso. Ou não?” E sarcástico: “As pessoas comentam: ‘mas emprego não é tudo’…
 
Como de hábito, Costa-Gavras acerta ao mostrar o ambiente de indiferença humana (e de crueldade) sob a égide do capital e o processo da deterioração emocional de Davert – que pode ocorrer com qualquer desempregado desesperado –  culminando na condição de serial killer ao transformar em ação concreta as piores fantasias negativas de eliminação dos concorrentes; e mais: levando às últimas  consequências a alucinada e permanente competição inescrupulosa no mundo da produção, um dos alicerces do selvagem mercado do trabalho.
 
Como na história de Thierry, o operário do filme de Brizé, o final enigmático de Costa-Gavras permanece em aberto. Dificilmente haverá final feliz nessas histórias sombrias.
 
Na mesma semana em que revimos O Corte a realidade ia além do drama individual da fronteira ficcional. As notícias são de que mais de 12% da população, no Brasil, se encontra desempregada entre julho e agosto passados. Não computando os inativos que desistiram de procurar novo trabalho.
 
De janeiro a setembro deste ano 700 mil indivíduos perderam seus empregos formais no país. Nada menos que quarenta mil foram defenestrados na região metropolitana do Rio de Janeiro, nos últimos três meses – produto do período atual de governança golpista errática, irresponsável e desvairada instalada no bunker do Planalto. ‘’O corte’’, no Brasil, é este: trinta e nove mil postos de trabalho sumiram segundo o Cadastro Geral de Emprego e Desemprego (Caged).
 
E por onde andarão os Thierrys e os Daverts por aí, nessa terra arrasada?

Assista ao trailer: