Ao apagar grafites, Dória ignora um dos vértices do Hip-Hop

Na penúltima edição da Bienal Internacional Grafitti Fine Art, realizada em São Paulo, em janeiro de 2013, um dos convidados para a série de debates promovidos pelo evento foi Paulo Mendes da Rocha, arquiteto e urbanista brasileiro de prestígio internacional. Questionado sobre o que pensava sobre o grafite, Mendes da Rocha, na época com 84 anos, afirmou: “Me parece a voz mais candente, hoje, das artes gráficas em geral”.

Ao apagar grafites, Dória ignora um dos vértices do Hip-Hop - Reprodução

Ao lembrar que há milhões de anos o homem já deixava nas cavernas evidências visuais de sua passagem pela Terra, o arquiteto concluiu: “A grande novidade foi a invasão do espaço público pelas camadas mais populares de todas as cidades do mundo. Portanto, para mim, salve o grafite!”.

A difusão global do grafite destacada por Mendes da Rocha é um fenômeno iniciado nos Estados Unidos na segunda metade dos anos 1970, graças ao surgimento, em cidades como Nova York e Los Angeles, de expressões artísticas que convergiram para estabelecer os três elementos do Hip-Hop: o rap (sigla para “música e poesia”), composto pelo DJ e o MC; os b-boys e b-girls, garotos e garotas que dançam ao som do rap; e o próprio grafite.

Respeitada mundialmente como porta-voz da juventude segregada em regiões periféricas das grandes urbes, a tríade de linguagens que consolidou o Hip-Hop como uma das mais importantes manifestações culturais do século XX encontra na São Paulo de 2017, no entanto, um ambiente hostil, graças à cruzada higienista decretada pelo recém-empossado prefeito João Dória Jr. (PSDB-SP).

Ao anunciar a criação do programa Cidade Linda, no dia 30 de dezembro, Dória antecipou que destinaria tolerância zero a pichadores, e informou também que pretende desenvolver um programa de formação de grafiteiros, chamado Arte Urbana, além de criar na cidade um “grafitódromo”.

Segundo Dória, o projeto será coordenado pelo muralista Eduardo Kobra. Conhecido, dentro e fora do País, pelos retratos multicoloridos de grandes personalidades sobrepostos por temas geométricos, Kobra, no entanto, afirmou que desconhecia a iniciativa e que, devido a uma demanda de 28 painéis que produzirá em Nova York até novembro deste ano, não vai colaborar com o programa da prefeitura.

Garoto propaganda do Cidade Linda, Dória foi flagrado, no último sábado (14), trajando um uniforme laranja e cobrindo um grafite na avenida 23 de Maio, no centro da cidade, com um jato de tinta cinza. Na operação anunciou também que determinará oito espaços reservados para o grafite naquela via pública e que extinguirá as pinturas que ilustram os chamados “Arcos do Jânio”, instalados no início da 23 de maio, avenida que liga as zonas norte e sul da cidade.

Ao defender o grafite como alternativa artística ao picho, Dória, em contrapartida, ignora quatro décadas de importância histórica da expressão visual para o Hip-Hop. Apagar compulsoriamente muros e muros da cidade impregnando as paredes de cinza e querer determinar espaços exclusivos para a prática do grafite é também desconsiderar a autonomia de uma expressão que sempre foi livre e sempre possibilitou manifestações legítimas das camadas menos visíveis de sociedades desiguais, como a nossa.

A ausência de diálogo com a comunidade do Hip-Hop, presente em São Paulo desde o início dos anos 1980, evidencia, neste caso, um comportamento arbitrário da nova gestão municipal. Querer gerenciar a produção de grafite na cidade é como querer intervir na capoeira e tirar da roda o berimbau, não faz o menor sentido.

No comunicado oficial sobre o projeto Cidade Linda publicado no site da Prefeitura, chama atenção o trecho a seguir: “O principal objetivo é a melhora na zeladoria urbana e o resgate da autoestima do paulistano, em ação integrada entre poder público, iniciativa privada, ONGs e cidadãos”.

Parcerias a parte, como gestor da maior cidade da América Latina, João Dória devia saber o quanto o Hip-Hop elevou – e continuará a elevar – a autoestima da juventude periférica de São Paulo. Negar a livre manifestação dessa camada expressiva de nossa sociedade é também negar a cidade em sua essência.

Vale lembrar, por fim, que os mutirões de assepsia, bem-vindos no aspecto de manutenção dos espaços públicos, provavelmente terão efeito temporário com relação ao grafite. Afinal, a proliferação de muros cinzas em São Paulo é também um convite aberto a novas intervenções. Como diz uma provocação replicada em vários pontos da cidade: “Eu picho e você pinta / Vamos ver quem tem mais tinta”.