Protestos confrontam França com velhas divisões

A prisão de um jovem negro nos arredores de Paris – e os abusos que ele denuncia ter sofrido por parte da polícia francesa – resultou em várias noites de protestos e distúrbios pelo país, demonstrando o sentimento de injustiça dos que vivem nos subúrbios das grandes cidades francesas.

Manifestação na França - NurPhoto

O incidente ocorreu na quinta-feira da semana passada (2), quando quatro policiais patrulhavam um conjunto habitacional em Aunay-sous-Bois, em Seine-Saint-Denis, nos arredores de Paris. A região é uma das mais desfavorecidas em toda a França.

Um grito de alerta avisou os traficantes sobre a presença de policiais, que decidiram verificar as identidades de um grupo de jovens nas proximidades. A situação se agravou rapidamente. Um dos policiais pôs o jovem Théodore, de 21 anos, contra uma parede.

Imagens publicadas na internet, feitas de longe, mostram que as calças do jovem teriam sido arriadas até os joelhos, sem que ninguém interviesse. Ele passou a ser agredido com um cassetete, que, segundo denuncia, foi introduzido em seu ânus numa profundidade de 10 centímetros.

O policial alega que queria afastar os joelhos do jovem. "Queria que ele perdesse o equilíbrio e caísse no chão, para algemá-lo mais facilmente", afirmou. Théodore, que ainda está hospitalizado, contesta a versão. "Eu o vi pegar seu cassetete e empurrá-lo para dentro propositalmente."
Um inquérito foi aberto, e os policiais foram afastados de suas atividades. Um deles está sendo acusado de estupro.

Jovens estigmatizados

Protestos eclodiram logo após o incidente em Aulnay-sous. Depois, se espalharam para cidades adjacentes. Um apelo feito por Théodore a partir do hospital para que os jovens "permaneçam unidos e ajam pacificamente" parece ter impacto limitado. Na noite de quarta-feira, centenas de pessoas protestavam nas cidades de Rennes e Nantes. Dezenas de jovens foram presos.

Tudo isso traz lembranças inevitáveis dos protestos de 2005, de semanas de duração, em virtude da morte de dois jovens eletrocutados enquanto se escondiam da polícia. Em todo o país, jovens dos subúrbios franceses queimaram automóveis e casas, resultando na prisão de 3 mil pessoas e em um grande número de feridos.

Para o sociólogo Renauld Epstein, da Universidade de Nantes, os distúrbios foram e são uma expressão de um aprofundado sentimento de injustiça.

"Os jovens nos subúrbios se sentem estigmatizados e tratados injustamente. A polícia os trata com brutalidade e os vigia constantemente, apesar de as verificações de identidade não fazerem mais sentido – os policiais sabem quem eles são", afirma. 

Entretanto, Arnaud Leduc, do sindicato da polícia Unité SGP em Seine-Saint-Denis, afirma que os controles nessa região são uma parte importante dos procedimentos policiais. "Existem ao menos dez traficantes locais na Cité 3000 e temos que fazer algo a respeito, não é?", observa. "Além disso, o trabalho dos policiais é extremamente difícil na Cité, que é conhecida com um bairro antipolícia", acrescenta Leduc.  

De modo geral, nos últimos cinco anos, a relação entre os jovens e a polícia vem se deteriorando. Ao ser eleito em 2012, o presidente François Hollande prometeu transformar os subúrbios franceses e reforçar o número de policiais para que eles pudessem estabelecer uma relação de confiança com a população local.  

Reformas deixadas de lado                 

O presidente anunciou também duas novas leis. A primeira delas estabeleceria que os policiais devessem emitir um recibo após as verificações de identidade, para facilitar que os cidadãos possam abrir processos contra o excesso de controles. A outra legislação deveria assegurar aos estrangeiros o direito de votar nas eleições locais.

Mas nenhuma delas foi levada adiante, afirma Thomas Kirszbaum, sociólogo da Universidade ENS Cachan.

"O governo abandonou as duas reformas que poderiam fazer com que as pessoas nos subúrbios se sentissem tratadas com mais justiça", analisa. "Diversas leis estabelecidas após a recente onda de ataques terroristas concederam aos policiais direitos ainda maiores, o que significa que eles estão sendo controlados com rigor menor ainda do que anteriormente."

Kirszbaum diz que os ataques terroristas resultaram ainda no aumento do sentimento anti-islã na França. Os moradores dos subúrbios, muitos deles muçulmanos, se sentem ainda mais estigmatizados.

"Em 2012, três quartos das pessoas nos subúrbios votaram em Hollande, mas agora elas se dizem extremamente decepcionadas com o governo", acrescenta.

A situação econômica também não ajudou. Desde 2012, o número de pessoas desempregadas na França aumentou em 600 mil. Segundo Kirszbaum, a maior parte delas mora nos subúrbios.

Diferenças em relação a 2005

Não se sabe a certo se os protestos deste ano continuarão a se espalhar, se estendendo durante semanas, como em 2005. Os motivos principais das revoltas dos jovens ainda permanecem.
Entretanto, o sociólogo Renauld Epstein entende as circunstâncias atuais são diferentes, ressaltando que o presidente Holande e o prefeito de Aulnay-sous.Bois, Bruno Beschizza – um ex-policial – reconheceram a gravidade do ocorrido e saíram em defesa do jovem Théodore.

"Em 2005, o governo negou alguns dos fatos ocorridos no início dos protestos e defendeu a polícia", lembra Epstein. "Isso contribuiu em grande parte para que os protestos se espalhassem para outras cidades – multiplicando aquele sentimento generalizado de injustiça."