A beleza colateral de Trump

As primeiras medidas de Trump, aparentemente surreais ao nosso tempo, têm nos proporcionado a percepção de uma catástrofe preanunciada.

Por Simão Yahia*

Protesto em Nova York contra a eleição de Donald Trump

A morte de um ente querido pode nos trazer algo de positivo? A resposta revelada no recente filme lançado nos cinemas (Collateral Beauty, traduzido livremente como Beleza Oculta), mesmo que sem uma explicação suficiente, nos diz que a morte, a tão temida – ainda que de um ente querido – possui uma “beleza colateral”. A pergunta que se faz, em relação ao novo presidente dos EUA, é se o prelúdio de uma tragédia humana e humanista nele expressado pode possuir algum “benefício colateral”. Seu caráter racista, xenófobo, protecionista, prepotente e agressivo possui uma beleza sutil em termo de relações internacionais: revela a real face da política externa estadunidense.

O ex-presidente negro, progressista e humanista Barack Hussein Obama veladamente e hipocritamente ajudou na criação e manutenção do “Estado Islâmico”, apoiou a agressão genocida da Arábia Saudita contra o povo do Iêmen e dá todo o suporte ao regime ditatorial do Bahrein. Trump não traz nada de novo na prática desta política externa, senão que expressa de forma clara suas verdadeiras intenções e desmascara o que o humanismo de fachada já fazia até então. Neste sentido, há o primeiro sinal de beleza oculta no novo gestor: revelar ao mundo a verdadeira face do regime dos Estados Unidos da América.

O segundo sinal é a redução do apoio dos EUA aos terroristas na Síria e no Iraque. Jamais pensaremos que Trump o faria por estar com pena do povo sírio e iraquiano, mas sim porque as forças nacionais sírias e iraquianas, com apoio de seus aliados, conseguiram retomar as principais cidades de ambos países e impor grande derrotas aos grupos apoiados pelos EUA. Se este é o motivo (as seguidas derrotas militares), a princípio poderia Hillary interromper este apoio da mesma forma, certo? Não exatamente, pois a estratégia de Obama ao apoiar tais grupos para derrubar o presidente sírio Bashar Al Assad não poderia ser interrompida por ele mesmo ou por sua sucessora sem alguma boa justificativa, pois significaria uma derrota política imensa aos democratas. Trump não tem este compromisso de fazer triunfar as políticas de seu antecessor, tendo em vista que não lhe causaria ônus algum tal derrota e nem a seu partido, o republicano. A segunda evidência da beleza oculta de Trump está, portanto, na facilidade em abandonar o apoio incondicional aos “rebeldes moderados” (assim chamados por eles) que tanto derramaram sangue de civis inocentes, principalmente na Síria.

A terceira evidência do benefício colateral que a eleição de Trump pode ter proporcionado é o isolamento do EUA, econômica e politicamente. Claro que a palavra isolamento não deve ser estritamente interpretada, mas o fato é que a ideia do muro entre os EUA e o México fez com que o país latino vizinho, parceiro econômico estratégico, tomasse uma postura política de reação e abrisse o diálogo, em torno da pauta comercial, com outros possíveis parceiros estratégicos no mundo. Somado a isso, a retórica e as medidas anti-imigrantes veio reforçar o sentimento dos povos do mundo de que a política dos EUA é agressiva e prejudicial ao desenvolvimento das nações.

Tudo isso, causado pelas primeiras medidas do novo presidente eleito, se soma a vários fatores da conjuntura mundial, dos quais podemos citar alguns: no âmbito militar, os seguidos fracassos no Oriente Médio – na Síria (derrota dos “rebeldes”), no Afeganistão e no Iraque (a resistência contra a ocupação), no Iêmen (a resistência popular contra os ataques da Arábia Saudita), no Líbano (a dura derrota das forças israelenses que tentaram reocupar o país em 2006) – acaba por fortalecer o chamado Eixo da Resistência, consolidando no Líbano e na região a resistência libanesa protagonizado pelo Hezbollah e no Oriente Médio o Irã enquanto potência econômica, militar e política regional; no âmbito econômico, vivenciamos a colossal presença chinesa no mundo e o reaparecimento dos blocos econômicos e projetos de integração – em especial a União Europeia –, além de maior presença da Rússia, Índia e outros países em acordos bilaterais com o resto do mundo; no âmbito político-ideológico, vemos a possibilidade do surgimento de novas formas pragmáticas e humanistas de se pensar a sociedade, o indivíduo e o mundo.

Novas configurações, novas propostas, novos blocos econômicos, novas filosofias de ver o mundo, a vida, a sociedade, a economia e de tratar o ser humano podem ganhar maior espaço. Mais que isso, diante de muito sofrimento, tanta pobreza, guerra e desordem promovidas pelas mãos da política externa americana, esta reconfiguração mundial é mais que necessária, pode ser o conforto no coração de milhões que terão direito à infância, ao futuro, ao presente, à pátria, à dignidade e à vida.

Mais especificamente, a trágica “conjuntura trump” pode, de forma colateral e paradoxal, ajudar na rearquitetura geopolítica que seguirá para um equilíbrio maior de forças, com a diminuição do poder dos EUA, se tornando uma potência não mais hegemônica, e a consolidação de outras potências globais ou regionais, tais como Rússia, China e Irã.