A Semana que revelou o Brasil

Em 1922 o mundo fervilhava com movimentos artísticos e intelectuais, em especial na Rússia, França e Alemanha. A Revolução Soviética tinha trazido um entusiasmo imenso para os artistas que queriam criar uma arte nova para o mundo novo que nascera ali em Outubro. No Brasil, esta onda nos alcançou em 1922 com a Semana de Arte Moderna.

Por Mazé Leite*

Artistas da Semana de Arte Moderna - Divulgação

Em São Paulo, grandes mudanças também aconteciam desde o final do século anterior. De uma pequena cidade com cerca de 240 mil habitantes, rapidamente, na década de 1920, a cidade atingiu seu primeiro milhão de moradores. Várias ferrovias cortavam o Estado fazendo escoar a produção de café até o Porto de Santos. Levas de imigrantes, especialmente italianos, foram chegando à capital e iam trabalhar nas primeiras indústrias que surgiam. Esses operários italianos, grandemente influenciados pelas ideias anarquistas, organizaram as primeiras greves na capital, em especial a grande greve de 1917.

Nos bairros de Higienópolis e Campos Elíseos, a elite paulistana já influenciada pelas ideias burguesas vindas da Europa, importava mobiliário, vestuário e artigos de luxo franceses, e principalmente a estética do “bom gosto” europeu. Desde o século 19 enviava seus filhos para estudar em Paris e fazia questão de se manter em conformidade com os valores estrangeiros.

Obviamente essa elite branca não gostaria de ser confundida com a ralé brasileira e seus negros, índios, mulatos, mestiços. O centro de São Paulo era palco de agitada vida cultural e as senhoras e os senhores passeavam pelas lojas granfinas da avenida São João, cruzada por bondes elétricos, para comprar artigos da moda, de bengalas a sapatos e guarda-chuvas. A garoa da cidade dava a essa gente a agradável sensação de caminhar por Paris ou Londres….

Foi esta elite paulistana que subiu as escadas do belo Teatro Municipal para participar dos eventos da Semana de Arte Moderna. Se vestiram a caráter, as senhoras e os senhores, para assistir as apresentações musicais de Heitor Villa-Lobos e Guiomar Novais. Acostumados à estética da Academia francesa e à poesia rigorosamente metrificada, os olhinhos deles faiscavam de ansiedade por ouvir grandes poetas parnasianos. Jamais imaginariam assistir o que estaria por vir…

Na contramão do que desejava a elite, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Graça Aranha, Menotti Del Picchia, Di Cavalcanti, Anita Malfatti e outros jovens artistas brasileiros estavam convencidos de que se havia que dar um salto – só que para dentro do Brasil! Os ventos da modernidade forçavam esse salto que chocou a plateia do teatro lotado. Ronald de Carvalho declamou em alto e bom som o poema “Os Sapos”, de Manuel Bandeira, que criticava o gosto da refinada poesia parnasiana:

“Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
– "Meu pai foi à guerra!"
– "Não foi!" – "Foi!" – "Não foi!"
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: – "Meu cancioneiro
É bem martelado.”

As linhas neoclássicas dos detalhes arquitetônicos do Teatro Municipal vieram abaixo! Vendo-se pega numa espécie de flagrante, a elite paulistana desabou em uivos, gritos e vaias, e o caos tomou conta do local. Nos dias seguintes, os jornais registravam aquele evento como uma “verdadeira falta de respeito” à gente tão refinada, à nata da sociedade paulistana! Um bando de rapazes e moças enlouquecidos, recitando poemas sem rima, sem metro, e mostrando pinturas e esculturas que eram um acinte ao gosto neoclássico! Um horror! As damas e os cavalheiros de Higienópolis e dos Campos Elíseos tinham sido acintosamente agredidos por aquele bando de loucos futuristas (denominação que se dava aos modernistas na época).

Além dos gritinhos histéricos e dos apupos, as senhoras e os senhores deixaram bilhetes malcriados atrás das pinturas expostas no hall do teatro, incapazes de encontrar beleza num homem que parecia sofrer do fígado de tão verde, numa tela de Anita Malfatti. Os modernistas haviam conseguido sacudir a modorrenta e provinciana elite de São Paulo, como o desejara Di Cavalcanti, que havia sugerido ao escritor Paulo Prado a realização de "uma semana de escândalos literários e artísticos de meter estribos na burguesiazinha paulistana".

Era a “ralé brasileira” e não os europeus que mais inspirava a criatividade de Oswald, Anita, Mário, Di Cavalcante, Tarsila. Mário de Andrade escreveu: “(…) E ilhados na enchente de escândalo que tomara a cidade, nós, três ou quatro, delirávamos de êxtase diante de quadros que chamavam “O Homem Amarelo”, “Estudante Russa”, “Mulher de Cabelos Verdes”… (…) Éramos assim”.

Já que os novos tempos levavam à redescoberta do Brasil, que se mostrasse o Brasil como ele era. Deste movimento nasceram poemas de Oswald de Andrade, nasceu a melodia das Bachianas Brasileiras de Heitor Villa-Lobos, nasceu Macunaíma, o herói de Mário de Andrade, que resolveu ir conhecer o Brasil profundo, viajando para o Norte e o Nordeste. Nasceu também de Mário seu livro “Paulicea Desvairada” com seu poema “Ode ao burguês” que também foi lido nos dias da Semana de Arte Moderna, para desespero dos burgueses.

Esse caldo cultural, que adquirira força ainda maior na São Paulo que se industrializava, com certeza inspirou o nascimento do Partido Comunista do Brasil, em Niterói, RJ. Eram tempos de crescimento econômico no Brasil, que propiciava esse verdadeiro salto civilizatório que representou aquele período.

Esses movimentos de vanguarda paulistanos, combinado também com as movimentações operárias que por aqui se desenvolviam, influenciaram o país inteiro. Artistas e intelectuais, de Recife a Porto Alegre, Rio de Janeiro, Manaus, Salvador, Belo Horizonte, foram atingidos em cheio pelo sentimento de redescobrir a cultura brasileira, a musicalidade dos nossos índios, a dança e a música dos negros, o nosso folclore, os verdadeiros valores culturais do nosso povo. Tudo isso como contraponto à burguesia brasileira conservadora e colonialista, voltada à cultura europeia… “Pra que discutir com madame?”, perguntaria mais tarde os dois mulatos Janet de Almeida e Haroldo Barbosa…

Mário de Andrade, um dos jovens líderes do movimento modernista brasileiro, resumiu neste poema a velha luta de classes daqueles idos de 1922:

“Garoa do meu São Paulo,
– Timbre triste de martírios –
Um negro vem vindo, é branco!
Só bem perto fica negro,
Passa e torna a ficar branco.

Meu São Paulo da garoa,
– Londres das neblinas finas –
Um pobre vem vindo, é rico!
Só bem perto fica pobre,
Passa e torna a ficar rico.

Garoa do meu São Paulo,
– Costureira de malditos –
Vem um rico, vem um branco,
São sempre brancos e ricos…
Garoa, sai dos meus olhos.”