Cem anos de solidão de Aracataca-Macondo

Aracataca não é uma cidade, é um estado de espírito. Um portal para se acessar tempos remotos e entender a vida urbana em seus primórdios, quando as casas tinham piso de terra batida e paredes de barro, as invenções eram trazidas por ciganos, os vizinhos eram parentes e o mundo era tão recente que as coisas careciam de nome.

Por Ana Magalhães

Aracata - Calle 2

Quando cheguei a Aracataca − depois de cinco horas de jornada rumo ao interior da Colômbia, saindo de Cartagena, balançando em um ônibus velho e sem ar-condicionado, parando por entre ambulantes em Barranquilha, tendo que pegar um taxi até a rodovia e balançando outra vez em um ônibus velho e sem ar-condicionado −, comecei a entender a solidão. Não a interna, que nos assola vez por outra nas noites insones e nos momentos sofridos. Mas a geográfica, de um povoado-ilha, rodeado por nada, a horas de distância de qualquer cidade grande. Aracataca vive no esquecimento.

Nesta aldeia ilhada, vi o asfalto vibrar com o calor constante de 40 graus, cachorros serelepes puxarem meu vestido, vi um moço triste de chapéu de palha sobre uma carroça vazia e senhoras passeando debaixo da sombrinha por entre ruas empoeiradas. Vi tendas de açougue com nacos de carne dependuradas como mochilas, incontáveis bares com bilhar, água potável sendo vendida em sacos plásticos, crianças uniformizadas com saia plissê e meia até o joelho e uma infinidade de motos atrapalharem o silêncio de um povoado onde não acontece nada.

Foi ali, naquele povoado onde o tempo dá voltas em círculos que nasceu, em 6 de março de 1927, o escritor que viria a ser o terceiro latino-americano a ganhar o prêmio Nobel de literatura. E era da mente mágica deste célebre escritor que o povoado perdido e solitário seria imortalizado como Macondo, a cidade dos Buendía em Cem Anos de Solidão.

Macondo é Aracataca e Aracataca é Macondo. Ali existe um rio com pedras polidas como ovos pré-históricos, borboletas amarelas e miúdas como as que giravam em torno de Remédios, um calor infernal que faz do gelo um dos melhores inventos da humanidade e existem as chuvas e inundações do rio Aracataca (que provavelmente inspiraram Gabo a colocar quatro anos de dilúvio ininterrupto em Macondo, onde, no dia seguinte, era possível contemplar peixes voando pelos ares devido à grande umidade).

Aracataca é tão Macondo que em 2006 houve um referendo para mudar o nome da cidade para ‘Aracataca-Macondo’. Porém, não houve votantes suficientes. Dos 22 mil eleitores do povoado, era necessário que 7.380 pessoas comparecessem às urnas, mas apenas 3.592 se deram ao trabalho. (Apesar da anulação do referendo, a mudança de nome era favorita: apenas 250 moradores queriam manter a tradição do batismo).

O povoado, antes de ser uma aldeia, era uma fazenda, e, lentamente, como Macondo, foi sendo construída às margens do rio por refugiados da guerra civil colombiana, em 1851.

Um livro do jornalista Rafael Giménez, que conta a história da cidade, destaca o caráter amigável entre seus fundadores. “Como refugiados, iniciaram seus trabalhos com harmonia, consolidando uma homogeneidade social e atitude de tolerância com os vizinhos. Aracataca se cimentou como um povoado de grande diversidade de origem, onde predominou a exploração primária da agricultura e da madeira”.

Em 1894, a aldeia tinha apenas uma rua, que ia do rio até o antigo cemitério, onde hoje está a praça Bolívar. Parecia erguida pelas próprias mãos de José Arcadio Buendía, “que era o homem mais empreendedor que se poderia ver na aldeia, determinara de tal modo a posição das casas que a partir de cada uma se podia chegar ao rio e se abastecer de água com o mesmo esforço; e traçara as ruas com tanta habilidade que nenhuma casa recebia mais sol que a outra na hora do calor. Dentro de poucos anos, Macondo se tornou uma aldeia mais organizada e laboriosa que qualquer das conhecidas até então pelos seus 300 habitantes. Era na verdade uma aldeia feliz, onde ninguém tinha mais de trinta anos e onde ninguém ainda havia morrido.”

Se hoje está imersa no ostracismo e na solidão – interrompidos apenas por turistas desavisados que vão à cidade por causa do escritor –, Aracataca já teve teus tempos de glória, quando atraía gente do mundo inteiro atrás de emprego e prosperidade.

Em 1906 chegou à cidade a linha férrea, em 1908 a região recebeu a visita do então presidente General Rafael Reyes e, em 1912, com a inauguração da empresa estadounidense United Fruit Company, Aracataca ganhou sua independência como município e começou a viver tempos de prosperidade. A multinacional bananeira trouxe consigo trabalhadores de diversas nacionalidades – franceses, árabes, espanhóis e venezuelanos.

No início da década de 20, o povoado tinha um clima cosmopolita – por suas ruas, escutavam-se diversos idiomas, enquanto os homens ‘da sociedade’ caminhavam pelas calçadas com chapéus de feltro e frequentavam o Carnaval ou as cumbiamabas (festas para dançar a cumbia, dança folclórica cubana que mistura ritmos indígenas e africanos), regados a rum Cataca.

Hoje, um observador detalhista consegue ver o então esplendor de Aracataca. Suas casas na região central têm uma sutil imponência e, até hoje, há ruas com nomes de estrangeiros, como a calle de los Turcos e a calle de los Italianos.

Foi nesta época que o pai de Gabo, Gabriel Eligio García, então telegrafista, se apaixonou por Luiza Santiaga Márquez. O pai de Luiza era contrário ao casamento dos dois, e, depois de muitas serenatas, cartas de amor e insistência, conseguiram se casar em Santa Marta em 1926, numa história que posteriormente inspiraria García Márquez a escrever O Amor nos Tempos do Cólera.

Após o nascimento de Gabo, seus pais mudaram-se para Barranquilha, e Gabito ficou com seus avós maternos em Aracataca. Daí viriam importantes influências à escrita de Gabo. A avó, Tranquilina Iguarán Cotes, era uma mulher “imaginativa e supersticiosa”, que teria inspirado a personagem Úrsula Iguarán.

O avô, Coronel Márquez, era um exímio contador de histórias e muito do que apresentou a Gabito está imortalizado em seus livros. Como a história do gelo, que está na primeira frase de Cem Anos de Solidão (quando criança, o avô de Gabo o levava à loja da United Fruit, a única com energia elétrica naquela época, para o neto colocar a mãos nos cristais resfriados, que pareciam que ‘ferviam’). E como a história do massacre das bananas.

No livro, José Arcadio Segundo é sindicalista e lidera a greve dos trabalhadores de Macondo. Numa noite, reunidos na praça da estação férrea, eles são alvo do exército, que atira na multidão.

O episódio da matança realmente aconteceu, em dezembro de 1928, quando Gabo tinha um ano de idade. Os trabalhadores da United Fruit, em greve, se encontram na estação de trem de Ciénaga, a 50 km de Aracataca. Trezentos soldados do exército fuzilam os manifestantes (em um tiroteio que durou 15 minutos), e o número de mortos é até hoje um mistério. O general responsável pela matança falou que foram 47. O então embaixador dos Estados Unidos estimou cerca de mil assassinados. E há quem diga que foram cinco mil mortos.

O avô de Gabo não se conformava com o silêncio em torno do massacre, apesar de o exército ter deixado, na estação, nove cadáveres. E, no livro, García Márquez ironiza, brilhantemente, o episódio.
Arcadio Segundo, depois do tiroteio, desmaia e acorda em um vagão de trem, com milhares de cadáveres. Ele salta, foge, e, ao voltar para sua casa, em Macondo, se surpreende com o fato de que ninguém sabia da matança. Os coronéis enterram o assunto dizendo que "Em Macondo não acontece nada, nunca aconteceu nada e nunca acontecerá. É um povoado feliz".

Depois da matança real, como numa revolta dos céus, a United Fruit e toda a região bananeira entram em decadência com o crack da Bolsa de 1929, e Aracataca entra no ostracismo. O próprio Gabo saiu de lá para Barranquilha com 8 anos de idade e só voltaria em 1983, um ano depois de ganhar o Nobel.

A United Fruit permaneceu na cidade até 1966, mas já não atraía trabalhadores estrangeiros. Os carnavais e as cumbiamabas desapareceram na década de 40. A cidade ganhou então esse clima nostálgico, solitário e melancólico. Aracata começa a viver problemas similares aos atuais: desemprego, falta de oportunidade, falta de saneamento e altas taxas de analfabetismo.
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Rafael Darío tem a pele cor de madeira, olhos puxados e cabelo preto abaixo da orelha. Parece mais jovem que seus 57 anos. Ele é jornalista e escritor e me conta que, na década de 60, plantações de maconha invadiram La Guajira (Estado da Colômbia, na divisa com a Venezuela) e a Serra Nevada, perto da cidade. A bonança do narcotráfico teria durado até finais da década de 80, quando a cocaína começa a ganhar projeção nacional e, principalmente, a atenção dos narcotraficantes.

“Nas dedécadas de 70 e 80, às vezes acabava a luz da cidade, e todos sabíamos que era a hora de passar caminhões lotados de maconha rumo ao porto de Santa Marta.” Nesta mesma época, o silêncio dos céus da cidade era interrompido pelo roncar de aviões bimotores – também destinados ao transporte da erva.

Hoje, nem banana nem maconha. Segundo Darío, o principal cultivo da região é palma africana, cuja semente produz um óleo, conhecido no Brasil como azeite de dendê.
O problema da palma é que ela empobrece o solo.

“Em Aracataca não acontece nada, nunca aconteceu e não acontecerá. É um povoado feliz”. Escuto a frase da boca de Tim Aan´t Goor, que se autodenomina Tim Buendía, 31, um holandês de 1,98 metro de altura, que viajou o mundo, especialmente a América Latina, e terminou decidindo ficar em Aracataca. Abriu uma pousada com três quartos para os hóspedes – a única da cidade. (Uma reportagem em um jornal colombiano me contou que a pousada de Tim foi recentemente fechada, e que ele retomou suas andanças pelo mundo.)

A frase foi adotada pelos ‘cataqueros’ como um lema – não metafórico – da cidade. Cheguei a vê-la impressa num folheto da prefeitura. Aliás, frases de Cem Anos de Solidão e referências à Gabo são constantes na cidade.


Pelas ruas de Aracata 
 

No portal de entrada de Aracataca, um mural de cimento com um desenho de Gabo e rodeado por borboletas amarelas tem uma frase: “Me sinto latino-americano de qualquer país. Mas sem renunciar nunca à saudade da minha terra, Aracataca, onde regressei um dia e descobri que entre a realidade e a nostalgia, estava a obra prima da minha obra”.

Há ainda a escultura de um livro, com borboletas amarelas esvoaçantes e a estátua de Remédios seminua. Há bilhares chamados Macondo, e há vários trechos de Cem Anos de Solidão na fachada de casas e de insistuições públicas.

Além da possibilidade mágica de voltar no tempo e e entender o ritmo de vida do século passado, não há muito o que fazer em Aracataca. A casa onde Gabo passou a infância é hoje um museu. Na casa do telegrafista, onde trabalhava o pai de Gabo, há fotos da família, uma máquina velha de escrever, um telégrafo e pouco mais.

Apesar da solidão e da sensação de que não há muito o que fazer, minha ida à Aracataca-Macondo foi marcante. Afinal, não é sempre que temos a oportunidade de voltar um século no tempo e conhecer a inspiração de um gênio da literatura.