Guadalupe Carniel: É russo!
O 9 de maio é um dia importante não só para a Rússia, mas para o mundo. Nesta data comemora-se o aniversário da vitória na Grande Guerra Patriótica, quando os nazistas foram derrotados. O Dia da Vitória (Dien Pobiedy), como é chamado, é comemorado na Praça Vermelha com tanques, desfiles e para o povo russo é uma das datas mais importantes da sua história.
Publicado 10/05/2017 18:19

Por isso, nada mais justo falar do futebol daquele país, que em pouco mais de um ano receberá a Copa, o maior evento do esporte, e já este ano sediará a Copa das Confederações. O país tem proporções continentais e ama o futebol assim como o Brasil.
Atualmente é uma das ligas mais ricas, já que na Rússia não faltam milionários pra investir. Mas as semelhanças param por aí. O único título do país é a Eurocopa de 1960, quando ainda era CCCP (Sigla no alfabeto cirílico para União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). E talvez seu jogador mais memorável de todos é Lev Iáchin (foto), o grande goleiro apelidado de aranha (ou pantera se for na Europa) negra, longe de ser algum artilheiro, mas com feitos tão incríveis quanto: 270 jogos sem levar gols, defendeu 150 penais e participou de 4 Copas (1958, 1962, 1966 e 1970).
Se hoje em dia falamos tanto de clubes como CSKA Moscou e Zenit, clubes que venceram a Copa da UEFA, até o fim da URSS os ditos "grandes", dentro da República Socialista Soviética Federada Russa (precursora da atual Rússia), eram formados por Spartak, Dinamo, CSKA, Lokomotiv e Torpedo, todos de Moscou.
Atualmente, dessa lista o Torpedo foi extinto. Seu retorno emula o que aconteceu com alguns clubes brasileiros, como a Ferroviária e o Novorizontino, que não têm nada a ver com seus ancestrais. Este Torpedo atual é considerado apenas um clube tradicional, já que está na segunda divisão e que assim como aqui, consideram grandes os clubes da primeira divisão.
No seu lugar, nessa lista dos maiores, entraram clubes de outras cidades como o Rubin de Kazan e Zenit, de São Petesburgo (que pelas últimas pesquisas detém a maior torcida do país). O Zenit, que pertencia à indústria de armamentos soviética e tem várias "filiais" na ex-URSS, foi campeão soviético em 1984 mas era considerado um azarão. O sucesso atual dele se deve a fatores como o financeiro, título continental e por ser um clube de fora de Moscou, que torcedores de outras cidades (principalmente as separatistas que não suportam a capital) adotam para torcer quando elas não têm clubes na primeira divisão. Isso faz com que as torcidas dos clubes moscovitas se concentrem apenas nessa cidade, onde a maior torcida é a do Spartak.
A história do futebol lá se divide em duas partes. A do período soviético, com a hegemonia do ucraniano Dinamo (13 títulos), mas com um equilíbrio grande entre o "trio de ferro" moscovita: Spartak com 12 títulos, Dínamo com 11 e CSKA com 7. O CSKA, por sinal, é o último campeão soviético, em 1991. A história por lá começou parecida com a de todo o resto do mundo: ingleses e cidade portuária. No caso, São Petersburgo em 1862 e logo depois, em 1864, é a vez de Moscou. Mas ele começou na clandestinidade, entre operários. Só começa a se popularizar em 1910. O esporte vivia na linha tênue entre ser uma manipulação ou servir de instrumento para mobilizar a população à prática esportiva coletiva e consequentemente à preparação militar.
A partir do período soviético, os clubes passam a ser propriedades de diversos setores da indústria, do comércio ou das forças armadas. Um dos mais famosos é o Dinamo, que tem sua origem em um clube chamado Orekhovo, de trabalhadores da indústria têxtil, mas que no período socialista passa a pertencer ao Ministério do Interior, que englobava as polícias do país. Cada república soviética tem o seu Dinamo e três deles se tornaram muito famosos, o de Moscou, o de Kíev e o de Tblissi.
A sociedade intitulada Lokomotiv tem origem no setor ferroviário, enquanto o Spartak tem como mantenedores vários setores da indústria e do comércio. Apesar da história contar que o Spartak era o clube da "oposição popular", ele sempre foi ligado à alta cúpula do país. Sua história é altamente ligada aos irmãos Starostin, que durante os tempos soviéticos oscilavam entre as graças dos líderes às prisões. Um dos seus torcedores mais ilustres, de hoje, é o chanceler Serguei Lavrov. Os Torpedo eram ligados à indústria automobilística e os Asas dos Sovietes (Krílya Sovietov) eram ligados à indústria aeronáutica.
A seleção que nasceu em 1911 (o país se filiou à FIFA em 1910) até 1952 não tem grandes feitos para contar, já que o máximo que protagonizava eram jogos amistosos, que literalmente serviam apenas para manter as relações diplomáticas. A URSS até então mantinha uma posição de isolamento em relação à participação de seus atletas nas competições internacionais. Mas a partir da Olimpíada de Helsinque a seleção soviética começa a aparecer. Em 1956 conquista o ouro. Em 1958 consegue a vaga para a Copa do Mundo. Apesar de não ter conquistado nada significativo, exceto a Eurocopa de 1960 e os jogos olímpicos de 1956 e 1988, sempre foi considerada uma seleção forte.
O Campeonato Russo (Vyshaia Liga) iniciou-se a partir de 1992 e sua liderança não mudou muito: em 25 edições o Spartak continua reinando, com 10 títulos. Depois dele vem o CSKA (6), o Zenit (4), o Rubin Kazan (2), o Lokomotiv Moscou (2) e o Alania Vladikavkaz (1) (antigo Spartak Vladikavkaz, faliu em 2010). Umas das maiores forças da ex-URSS, o Dinamo, jamais venceu o Russo e hoje disputa a segunda divisão.
O maior clássico de todos é Spartak versus CSKA, também conhecido como o Grande Clássico Moscovita. Com o fim da maior rivalidade da era soviética, que envolvia o Dinamo Kíev e o Spartak Moscou, na Rússia capitalista cria-se uma nova rivalidade, entre o time do povo e os "cavalos". Tudo começa pelas origens dos times. O Spartak é o time que foi fundado num bairro de operários russos, o Krasnaya Presnia, é apelidado de "time do povo" e só conseguiu ter um estádio em 2014. Antes mandava jogos no parque Lujniki (antigo estádio Lênin, construído para o Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes em meados dos anos 1950), na margem do rio Moscou. Fundado em 1922 por Nikolai Starostin, teve como nomes Krásnaia Présnia, Pichtcheviki e Promcooperatsia, até 1935, quando a sociedade adota o nome de Spartak, inspirada em Espártaco, líder de uma revolta de escravos contra o Império Romano.
Os adversários chamam os seus torcedores de "carniças" (Miaso), por causa de um dos setores que mantinha o clube, o da indústria da carne. O seu rival, o CSKA (Clube Central Esportivo do Exército) é o clube "dos soldados". Originou-se nas forças armadas soviéticas e tem "partes" espalhadas por toda a ex-União Soviética. Outros clubes europeus foram criados sob sua inspiração, como o CSKA de Sófia (Bulgária), o Steaua de Bucareste (Romênia), o Dukla Praga (Tchéquia) e o Estrela Vermelha, de Belgrado (Sérvia)
Chamado pejorativamente de "cavalo" pelos adversários, por ser o animal que era usado pelos soldados no início do estado soviético, tem grande apelo popular na cidade. Como o Palmeiras no Brasil, sua torcida acabou adotando o cavalo como símbolo. Mas não se deixe levar pelas origens: a grande maioria dos torcedores dos times russos, sem excessão, são hoje defensores do nacionalismo, do pan-eslavismo e do neofascismo. Os torcedores do Spartak de Moscou, por exemplo, têm alianças com clubes como o Estrela Vermelha sérvio e o Olympiacos grego, por causa da religião ortodoxa. O Zenit de São Petersburgo é notório por seus torcedores racistas.
Okolo Futbola (Sobre o futebol) é um dos filmes mais interessantes pra quem curte um pouco de cultura de arquibancada. Ele conta um pouco sobre a relação dos hooligans russos (eu não acho que a expressão hooligan caiba bem para um russo ainda) e o Spartak. Logo no começo mostra uma briga de spartakistas com os torcedores do CSKA dentro do metrô de Moscou. O filme é dividido em duas partes:
Portanto, não se engane. A Rússia vai bem além de vodka e bons escritores.