“Rota do Che” atrai turistas para o interior da Bolívia

No dia 8 de outubro de 1967, a emboscada armada pelo exército boliviano contra a guerrilha de Ernesto “Che” Guevara (1928-1967) mudaria para sempre os rumos do pequeno vilarejo de La Higuera e da vizinha Vallegrande (735 km de La Paz).

Por Fernando Moura

La Higuera - Wikicommons

Apesar do culto local ao personagem após seu assassinato, a região só virou atrativo turístico internacional 30 anos depois, quando um soldado boliviano revelou que os restos mortais de todos os guerrilheiros permaneciam enterrados em Vallegrande, o que gerou um grande mutirão de busca pelas ossadas.

Em 28 de junho de 1997, a ossada de Che Guevara foi finalmente encontrada em um antigo terreno militar, sendo posteriormente levada para Santa Clara, em Cuba, após um acordo entre os governos cubano e boliviano. Apesar da perda valiosa para o turismo local, foi neste momento que surgiu a “Rota do Che” como principal roteiro turístico na região. “Os chineses até beijam o chão da pracinha onde ele foi preso”, comenta o guia turístico Anacleto Zarate, 65 anos. A escola em que ele estudava, quando adolescente, em La Higuera ficaria eternizada como o local da execução de Che, após ele passar uma noite preso no local.

“Com a descoberta da ossada naquele ano e a proximidade dos 30 anos de sua morte, em 1997, seguidores de todo o mundo organizaram o 1º Encontro Mundial Ernesto “Che” Guevara, que seria realizado no mês de outubro a cada decênio”, conta Leo Ledezma, 38 anos, diretor da Unidade de Turismo da Casa da Cultura de Vallegrande.

O setor foi criado em 2016 com o objetivo principal de estruturar o atendimento turístico da cidade para o 3º Encontro, em outubro deste ano, com expectativas de proporções inéditas por conta do cinquentenário da morte do revolucionário argentino.

Apesar da estrutura de recepção, o acesso a La Higuera é precário. Não há linhas de ônibus e a maioria das pessoas faz um bate-e-volta no mesmo dia de táxi a partir de Vallegrande por R$ 100, em uma estrada de terra à beira de grandes desfiladeiros, em que 60 km são percorridos entre duas e três horas.

Há a opção de pegar um ônibus e descer a 10 km de distância, completando o percurso a pé ou, com muita sorte, de carona, frequentemente utilizado por mochileiros com maior disposição e que pretendem pernoitar no local. Por esse motivo, Vallegrande, a cidade onde o guerrilheiro foi enterrado, se estabelece como o principal e mais acessível ponto para se fazer a “Rota do Che”.

Saindo de La Higuera, a trilha para chegar até à Quebrada del Churo dura cerca de 3 horas, sendo geralmente feita por guias pagos. Foi naquele local que Che Guevara e seus companheiros foram vistos por um camponês em um riacho sem saída, chamado “El Churo”, a 2 km de La Higuera, onde eles haviam passado semanas antes e que já estava ocupada pelo exército.

Com a delação do camponês, ao nascer do sol, centenas de soldados marcharam até o local, em uma grande operação armada que resultou no maior ataque sofrido pelo grupo guerrilheiro até então, com metralhadoras e granadas.

Che foi ferido na perna e se rendeu ainda dentro do riacho, sendo interrogado e levado para La Higuera, onde seria executado no dia seguinte após a chegada de um oficial da CIA (Central Intelligence Agency), dos Estados Unidos – fato que é tema de debate até hoje. Seu corpo foi levado de helicóptero para Vallegrande e exposto ao mundo em uma pequena lavanderia do Hospital Sr. de Malta.

“O clima era de uma admiração silenciosa, pois quem falasse bem seria reprimido pelo governo militar”, conta o vallegrandino Arnulfo Lino, 65 anos. “Ele estava com aqueles olhos abertos, que chocou a todos. Parecia mesmo que estava vivo”, acrescenta. A notícia oficial dizia que sua morte se deu em combate, mas o boca a boca já espalhava a verdade pela região.

O guia Zarate garante e mostra, na ida ao Churo, o local exato onde Che se rendeu, onde a guerrilha comprava comida, onde o exército se posicionou, etc. O fato é que todos em La Higuera se oferecem para acompanhar o turista até o riacho, mas poucos sabem explicar detalhadamente as histórias. Há também muitas pessoas que “usam a imaginação para criar suas próprias estórias”, de acordo com alguns moradores. Livros, filmes e estórias contadas divergem frequentemente sobre os detalhes dos acontecimentos.

O vilarejo, hoje habitado por cerca de 30 pessoas, respira Che das paredes a um gigante busto na praça principal. Em 1967, com acesso feito apenas por cavalos e burros em uma trilha nas montanhas, cerca de 300 habitantes viviam na região.

“Hoje os jovens vão estudar em Vallegrande e não voltam nunca mais”, conta Ruperta, 40 anos, irmã de Zarate e administradora da lojinha e albergue “Aquí me quedo”, construído no local onde os guerrilheiros teriam acampado na passagem anterior para La Higuera.

O atrativo principal da vila é o Museu Comunal La Higuera, construído no mesmo lugar onde ficava a escola, derrubada dois anos após a execução de Che. Hoje, turistas deixam ali mensagens, fotos, dinheiro e até documentos, na maioria argentinos. Outro local importante é a Casa do Telegrafista, onde o exército teria recebido por telegrama a ordem vinda da CIA para executar Che Guevara. Há 14 anos, a casa também virou um albergue, gerenciado pelo francês Juan Lebras, com ajuda do pequeno filho Inti, nome de um dos principais companheiros de Che.

Hoje, a “Rota do Che” atravessa uma grande reestruturação visando os eventos dos 50 anos de sua morte. “Antes não havia normas, horários e preços definidos. Quando encontravam os guias, os turistas podiam pagar valores mais altos, pois cada um negociava seu preço, e às vezes sequer iam a todos os lugares. Isso danificava a imagem de Vallegrande”, diz Leo Ledezma.

Desde novembro do ano passado, porém, o diretor da Unidade de Turismo da Casa da Cultura conta que foram criados quatro horários diários e preços definidos (R$ 20 por pessoa) para um tour completo aos três pontos turísticos da cidade: a Lavanderia Che Guevara; a Fossa dos Guerrilheiros, onde foram encontrados os restos mortais de outros grupos que caíram antes e depois de Che; e o novo Centro Cultural Che Guevara, onde está o Mausoléu Ernesto Guevara, construído sobre sua fossa.

A Lavanderia chama a atenção por estar exatamente como era em 1967, com o mesmo teto, piso e pia que receberam o corpo de Che e seus dois companheiros, nos fundos do hospital Sr. de Malta, em funcionamento normal até hoje. As paredes, porém, estão todas pichadas, com assinaturas e mensagens como a dos cubanos que encontraram seu corpo e resumiram, no mesmo dia, a avalanche de mensagens e sentimentos que invadiria a região desde então: “… e não é porque te dissimulam abaixo da terra que vão impedir que te encontremos, Che comandante, amigo”.
A passagem de Che por La Higuera e o sumiço de seu corpo pelo exército deu origem a diversas teorias sobre o que teria sido feito.

Por ser médico, boa parte da população local, que pouco conhecia de sua história, passou a considerar Che um “santo das curas”, a quem são dedicadas velas, promessas, flores, diversos poemas e rezas até os dias atuais. “É muito triste a história”, comenta Qenia Aguilera, 9 anos, nascida em La Higuera. “Eu sei que ele era um grande médico e curava muitas pessoas”, completa.

O livro “El Che en la Poesía Boliviana”, uma compilação de Ramiro Barrenechea Zambrana, é aberto pela “Reza a San Ernesto”, que diz no trecho inicial: “San Ernesto de la Higuera, milagroso patrono de Vallegrande: você que desceu um dia do céu de helicóptero, escute, por favor, nossa reza, purificai nossas almas, rogai pelos pobres da terra. Você que lutou por nós, sofrendo fome e doenças, e está sentando à esquerda de Deus pai todo-poderoso: rogai pelos pobres da terra”.

Por conta deste culto ao personagem revolucionário, a região nunca é esquecida e se tornou visita obrigatória para todos que se debruçam na história deste lendário guerrilheiro latino-americano, principalmente por jovens de todo o planeta que compartem seus ideais de justiça social e deixam calorosas homenagens ao ídolo em todo o roteiro, embora grande parte discorde atualmente e sequer cogite participar de uma luta armada.