Publicado 22/06/2017 16:50
A gruta de Lascaux (Dordogne, França) possui uma das mais impressionantes amostras de arte rupestre do Paleolítico. Em 80 a 90 metros de comprimento, foram classificadas 1.963 unidades gráficas entre pinturas e gravações, 915 das quais são de animais. Ao lado de Altamira (Cantabria, Espanha) e Chauvet (Ardèche, França), ela constitui o que os entendidos chamam de Capelas Sistinas da arte pré-histórica, ainda que as imagens não mostrem nenhum querubim.
Apesar de Lascaux não ter as atrações ou a variedade de um shopping e, diga-se o que quiser, não ser tão emocionante como a Eurodisney ou o final da Liga dos Campeões, até 1955 recebia mais de 1.200 visitantes por dia. O dióxido de carbono produzido pelos turistas começou a danificar as obras que o Homo sapiens sapiens pintou há uns 15 a 18 mil anos, de modo que, para garantir sua preservação, a gruta de Lascaux foi fechada ao público em 1963: triste fim de uma oportunidade de negócio.
Conta-se que Picasso esteve entre os privilegiados que chegaram a visitar Lascaux. Ao sair, os jornalistas perguntaram sua opinião. O pintor, impressionado pelo que havia visto, declarou: “não inventamos nada”.
Nem o abuso de criatividade de Picasso, que no seu auge pintava de diferentes maneiras, sem jamais satisfazer-se com o resultado, conseguiu superar as técnicas e a arte que praticaram os cro-Magnons do Paleolítico.
Por isso, entre outras razões, não me surpreendeu que Bernard Maris assegurasse, num de seus livros, que a Teologia e a Economia não descobriram nada nos últimos séculos. Questão de fé, há mais de dois mil anos é a mesma cantilena: o padre, o filho e o espírito santo. Amém. Por sua vez, quando perguntavam a Milton Friedman, “O que há de novo?”, Milton, que era um gozador, respondia “Adam Smith” — e morria de rir.
Como qualquer pessoa normal, considerava Adam Smith (1723-1790) e Jean-Baptiste Say (1767-1832) os fundadores da Economia Política. Sabendo que ainda em nossos dias a mão invisível do mercado é o dogma entre os dogmas, e a política econômica da oferta é a panacéia universal, compreende-se por que razão ambos autores pesam tanto.
O bom dos primeiros economistas é que não havia ilusões quanto à ciência econômica, a ciência do mal e da miséria, a dismal science, a ciência sinistra — porque sinistro é o destino a que conduzem o capitalismo e o liberalismo que eles defendiam (B. Maris). Um pouco mais tarde, Marx concordou com esse sentido quando escreveu: “A humanidade se situa fora da economia política, a desumanidade dentro”. Bernard Maris não deixou por menos, ao escrever: “Tudo o que é econômico é desumano. Tudo o que é desumano diz respeito à economia. A economia é o domínio do horror e da desumanidade. O homem nasce quando morre a economia”. Como não dou uma de erudito, não vou lembrar que para John Maynard Keynes a economia era um vasto horror que um dia, felizmente, iria dar lugar à cultura, à arte, à política, à liberdade, à felicidade.
Se conto essas coisas é porque, há alguns dias, uma leitora de Politika sentiu-se mal quando lhe fiz ver que os economistas são seres abomináveis. Eu não sabia que um de seus sobrinhos é economista, que sempre teve boas notas, que fez seus estudos nos EUA, que é um orgulho para a família…
E eu tentando explicar-lhe que “na melhor das hipóteses um economista não passa de um vigarista, um charlatão que esconde em seu palavrório, geralmente complicado, o objetivo imposto por seus senhores, que é manter os homens na servidão. Na pior, é a polícia ou o prostituto do capital. E a economia é o canto gregoriano da submissão do homem. A teoria da ordem dominante, a ciência da escravidão”. (B. Maris).
Não sou o único estraga-prazeres. Antes de mim, Nicolás Guillén, em um de seus poemas, falou do ofício do filho de “Dona Maria”:
Ai, pobre dona Maria,
ela que nada sabe!
Seu filho, o que tem a pele manchada
a soldo na polícia.
Ontem, sorrateiro e sutil,
andou rondando minha casa.
Passa! – pensei ao vê-lo – Passa!
(Ia de traje civil);
Senhora tão respeitada,
a pobre dona Maria,
com um filho na polícia,
e ela não sabe de nada [1]
Karl Marx e, por que não dizer, John Maynard Keynes, tentaram libertar o homem da economia. Não se deram bem. Hoje, não há santo dia em que meia dúzia de economistas não subam ao púlpito, perdão, à televisão, para nos contar suas fabulações, mentiras, dogmas, números e percentuais que, em sua visão distorcida, são mais importantes que o ser humano.
O certo é que Adam Smith, Jean-Baptiste Say, Karl Marx, John Maynard Keynes e muitos outros só tiveram que examinar uma realidade tão antiga quanto o mundo para se dar conta da cloaca em que se metiam ao dedicar-se à economia.
Adam Smith e Jean-Baptiste Say eram comerciantes; às vezes, produtores. John Maynard Keyner e David Ricardo foram especuladores. Marx foi pobre. Quando nasceram as técnicas de produção industrial, do comércio, dos bancos e das finanças, os truques da dupla contabilidade, os monopólios, o tráfico de influência, o conflito de interesses, o engano, a fraude, o golpe, o roubo, a arbitrariedade, a pilhagem, a exploração, a dissimulação, a informação privilegiada, os privilégios, a incúria, a prevaricação, as propinas, a usura, o abuso do poder, a conspiração — em suma, as técnicas do capitalismo já existem há séculos!
Se você vai a Provins, cidadezinha medieval perto de Paris, encontrará não apenas uma fortaleza, as imponentes muralhas e torres que circundam o povoado, mas também a igreja basílica colegial de Saint-Quiriace, que data do século XII, onde Joana d’Arc ajoelhou-se ao lado do rei Charles VII em 3 de agosto de 1429, e este escritor há cerca de um mês, mas não exatamente para rezar.
Se anda por Provins, chegará a Le Roy Lire, livraria especializada na Idade Média. Ali encontrei duas jóias que veem ao caso: um livro sobre as Foires de Champagne (Feiras de Champanhe), que reuniam comerciantes das cidades mercantes da Europa entre os séculos XII e XV. A cada ano, as cidades de Lagny-sur-Marne, Bar-sur-Aube, Troyes e Provins organizavam uma enorme feira à qual acorriam negociantes de Veneza, Florença, Gênova, Lucques, Bruges, Londres, Leipzig, Sevília, Stettin, Cracóvia, Lübeck, Barcelona, Praga, Paris, Novgorod e outras tantas.
Essas feiras precederam, por sua influência econômica e financeira, os primeiros centros financeiros internacionais. Ninguém saía andando com o dinheiro das vendas: já existiam redes bancárias e as duplicatas e ordens de pagamento emitidas em Bruges e compensadas em Veneza ou Londres.
Era preciso lidar com os incipientes caminhos cheios de grupos de assaltantes armados, da navegação aleatória em redes fluviais incertas e dos pedágios caros, para não falar de um tráfego marítimo exposto aos caprichos dos ventos e ao temor dos corsários. Goscinny conta, em um de seus Astérix: um navio de comerciantes fenícios avista um barco pirata. A reflexão de um comerciante diz tudo: “Piratas! Que má sorte! Poderiam nos afundar, ou então nos matar. Pior ainda, roubar nossas mercadorias”.
Se cada cidade possuía sua própria moeda e seu próprio sistema de pesos e medidas, os banqueiros e agentes de câmbio facilitavam os intercâmbios com uma ciência que já era milenar. O denier provinois (dinheiro de Provins) fazia as vezes do euro medieval, e a onça troy (medida de peso), que era então calculada no trébuchet (balança de precisão), continua ainda hoje sendo a referência mundial de peso para metais preciosos.
A outra joia é um livro de Jean Favier, membro do Instituto da França, ex-Diretor Geral dos Arquivos da França, e ex-presidente da Grande Biblioteca Nacional. Um erudito, o Favier. O título do seu livro diz tudo: Do ouro e das especiarias – Nascimento do homem de negócios da Idade Média.
Sua leitura oferece, para além de uma visão estereoscópica da vida medieval, um compêndio tão completo de truques, armadilhas e velhacarias que daria para poupar as cobranças das escolas de comércio. Harvard, The London School of Business and Finance, HEC Paris (Escola de Altos Estudos Comerciais de Paris) e outras instituições semelhantes são um arremedo perto dos comerciantes da Idade Média.
O livro é uma mina de ouro. Jean Favier nos conta que, entre os homens de negócios da época, “o grupo social se fecha deliberadamente para preservar e explorar suas vantagens”. Como se vê, o capítulo começa bem. Entre as vantagens, contam-se “as do reino ou cidade, a do ofício organizado, a arte ou a corporação”. Quer dizer que, no marco de determinadas fronteiras, quem exercia o poder estabelecia privilégios que a alguns caíam bem e a outros caíam mal — você sabe como é isso de livre concorrência…
Se havia concorrência, ela ocorria entre privilegiados de diferentes reinos, cidades-república ou domínios feudais. Assim, cada reino, cada cidade, cada ofício, cada corporação definia regras que dificultavam o trabalho da concorrência. “Eliminar as barreiras era desaparecer”, dizia Favier. Para definir privilégios, estabelecer barreiras, construir obstáculos, era imprescindível que “o poder público tivesse força para impô-los, e sobretudo obter a concordância, ainda melhor, a conivência dos meios de negócios”. Na Idade Média, os ricaços já manipulavam.
Os privilégios concedidos aos grandes, aos poderosos, aos peixes gordos, tornavam virtualmente impossível que surgisse um concorrente entre os peixes pequenos, “a impossibilidade para o pequeno comerciante de algum dia integrar o grupo dos comerciantes de horizontes amplos”. Soa familiar?
Em Veneza, no ano de 1297, acabaram fechando a lista das famílias mercadoras autorizadas a tomar parte do Grande Conselho. Desse modo “consolidavam-se as grandes fortunas, continham-se as audácias e cimentavam-se as mediocridades”. Não era o Chile [ou o Brasil — Nota da Tradução], mas a República de Veneza.
Biche e Mouche, comerciantes toscanos, conseguiram transformar-se nos conselheiros mais ouvidos de Felipe, o Belo, rei da França (1268-1314) “e aproveitaram-se disso sem vergonha. Reservaram para si as melhores especulações. Monopolizaram a moeda real. Receberam concessão dos impostos das Feiras de Champanhe. O privilégio de informação que confere a familiaridade com o rei lhes ofereceu muitas oportunidades no comércio e nos bancos. E seu sobrinho Tote foi o homem de negócios pessoal de Enguerran de Marigny, na época em que aquele que era chamado de vice-rei pelos invejosos transformou as relações diplomáticas – com o Papa, assim como com as cidades flamengas – numa sórdida negociata em escala europeia”. Das duas uma: ou naqueles anos não se conhecia a confiança cega, ou então eram especialistas no assunto.
Entre os anos de 1298 e 1326 sucedem-se as quebras e as crises. “A confiança afunda”. Para restaurar a confiança, parece mais útil eliminar a livre concorrência. “As empresas novatas que são formadas preferem então entender-se para não se arruinar mutuamente. Os mercados se distribuem, operam em conjunto nas praças bancárias. Cada empresa explora uma área geográfica bem definida”. Aparição – ou reaparição – dos carteis. Os Papas João XXII e Benedito XII bendizem as operações. Não inventamos nada.
“Uma das armas da livre concorrência – disse Jean Favier – é naturalmente o segredo”. Já na Idade Média. O que nos faz compreender a profundidade da “transparência” e os discursos sobre a simetria da informação, virtude sine qua non dos mercados perfeitos em que as barreiras de entrada devem ser as mesmas para todos os concorrentes. Palavrório oco.
A informação já é um ativo, um valor que não convém compartilhar com ninguém, nem sequer com os sócios que contribuem com capital: “As estruturas do capitalismo nascente – escreve Jean Favier – refletem esta preocupação: evitar que muitos sócios conheçam a realidade econômica. A prática do depósito remunerado, que atrai capitais estrangeiros no contrato constitutivo da sociedade, exclui com eficácia do conhecimento e da gestão dos negócios boa parte dos investidores. Bernard Madoff e as administradoras de fundos de pensão tiveram precursores.
Melhor ainda, “as sociedades em nome coletivo e as sociedades com filiais permitem de modo mais sutil a multiplicação de sócios, que em sua grande maioria não conhecem senão uma parte do negócio”.
Tal cidade, tal rei cobra pedágios nas pontes dos rios que cruzam seus territórios, ou exime de tais tributos determinados comerciantes, mediante retribuição. Paris exige que cada comerciante estrangeiro “se associe” a um parisiense, sob pena de exclusão de suas mercadorias. Assim nasceu – ou renasceu – o traficante de influências com entrada no palácio, o lobista, o “agente local” cujo aporte limitava-se a cobrar – naquela época – até uns 50% de lucro sem fazer absolutamente nada.
Às vezes a “livre concorrência” chega à agressão física. Os comerciantes ingleses pediram a Henri VI – no ano de 1949 – que afundasse os barcos bretões ou normandos para que pudessem “dominar os mares”.
Uma magnífica biografia de Jean-Baptiste Colbert (1619-1683) – ministro das finanças de Luis XIV e grande impulsionador do Estado no desenvolvimento econômico da França –, publicada no século XVIII, conta sobre a pirataria holandesa contra os navios mercantes franceses. E sobre a espionagem francesa que conseguiu apoderar-se das técnicas dos vidraceiros de Murano. Livre concorrência. Em matéria de pirataria, e de espionagem, os ingleses não ficam atrás. Às vezes vale a pena ler livros velhos.
Graças a estas joias da literatura econômica, à minuciosa pesquisa realizada durante décadas por verdadeiros estudiosos, ao exame de milhões de documentos comerciais dispersos por toda a Europa, cresce minha convicção: quando as grandes corporações, as multinacionais, algum chefe de Estado, dois ou três lacaios, muitos políticos, não poucos “homens de armas” e seus inúmeros criados acumulam uma rápida riqueza e transformam-se em milionários da noite para o dia, utilizam técnicas e recursos que nasceram, em alguns casos, há milênios.
Não inventamos nada nos tempos de nossa feliz modernidade.
—
[1]
¡Ay, pobre doña María,
ella que no sabe nada!
Su hijo, el de la piel manchada,
a sueldo en la policía.
Ayer, taimado y sutil,
rondando anduvo mi casa.
¡Pasa! – pensé al verle – ¡Pasa!
(Iba de traje civil).
Señora tan respetada,
la pobre doña María,
con un hijo policía,
y ella que no sabe nada.