Eleição direta pode recuperar o Estado democrático, diz historiadora

Pela primeira vez na história do Brasil temos um presidente da República, no exercício de sua função, sob investigação da Polícia Federal e prestes a ser denunciado ao Supremo Tribunal Federal (STF). Para a historiadora e professora em História Social da Universidade de São Paulo (USP) Maria Aparecida de Aquino, essa situação é parte da condição de ilegitimidade e ilegalidade que o país enfrenta desde janeiro de 2015.

Por Dayane Santos

Maria Aparecida de Aquino

Em entrevista ao Portal Vermelho, Maria Aparecida de Aquino destaca os efeitos dessa conjuntura política e desmonta a tese propagada por setores da grande mídia e pelos procuradores da Lava Jato de que no Brasil ha uma “corrupção sistêmica”.

Confira a íntegra da entrevista:

Portal Vermelho: Pela primeira vez na história, temos um presidente em exercício sendo investigado pela Polícia Federal. Como a senhora avalia essa condição?

Maria Aparecida de Aquino: A democracia tem que se mostrar bastante forte para conviver com uma situação tão adversa como essa. Neste caso, temos que analisar o todo. Estamos numa determinada situação com o atual cidadão que ocupa a presidência da República. Mas, na realidade, esta situação vem se prolongando. Estou me referindo aos diversos atentados à democracia que têm sido cometidos. Desde o momento em que a presidenta Dilma assume, em 1º de janeiro de 2015, temos um movimento de grupos da sociedade com determinados interesses, obviamente, que vão impedir esse governo até chegarmos no ápice, no caso dela, que é o impeachment. Então, temos toda essa trajetória antecedente que é de atentado à democracia, porque embora esteja sendo feito de uma forma “legal”, pois uma coisa que quiseram muito se diferenciar em relação à situação de 1964, que beirou e aconteceu a ilegalidade e ilegitimidade. O que os grupos de interesses acharam que podiam fazer desta vez: dar andamento a um processo que mantivesse o aspecto legal, para parecer que estamos num mundo democrático, mas não é.

Estamos vivendo desde 1º janeiro de 2015 uma realidade de ilegalidade, ilegitimidade e de atentado à democracia das mais diversas formas. Foi se acentuando, com o processo de impeachment ilegítimo, e agora, não há um dia em que este cidadão que ocupa a Presidência tenha governado de forma “tranquila”. Uma hora ele tira o ministro que está sendo investigado na Lava Jato, outra hora tira outro para substituir o deputado para que o cidadão da mala não diga nada.

O Congresso Nacional teve papel determinante no golpe de 1964. Fazendo um paralelo com o impeachment da presidenta Dilma e a situação de ilegitimidade que a senhora citou, nota-se o peso do Poder Legislativo na manutenção das manobras de grupos de interesse. Nós vivemos num sistema presidencialista-parlamentarista?

Acho que está mais para o Judiciário que para o Poder Legislativo. Mas uma coisa importante que devemos lembrar é o comportamento do Congresso, que se comporta da maneira mais imoral que podemos imaginar. Quem acompanhou o processo de impeachment da presidenta Dilma e observou aquele circo de horrores ao qual nós fomos submetidos – pela minha mamãezinha, pela minha vovozinha, pelo cachorrinho – evidenciou que temos um Congresso triste, sem moralidade e legitimidade. Aí, quem acaba assumindo isso é o Judiciário, o que é terrível pela forma que está sendo feita, sempre à margem da lei. Quando se pensa em medidas do tipo condução coercitiva ou prisão preventiva, todas estão sendo feitas à margem da lei. Ficaram muito assustados quando deixaram o José Dirceu ir para a casa, mas acontece que o homem estava ilegalmente preso. Isso é muito ruim para nós e talvez seja a pior coisa que pode acontecer. Está se desenhando a cada momento uma interrupção do jogo legítimo democrático. O Estado democrático de direito está sendo corrompido por um poder que, teoricamente, deveria assegurar o Estado democrático de direito.

Como a senhora analisa o papel da mídia diante desse cenário?

Da mesma maneira como em 1964, a imprensa usa da pior forma o seu papel. Parece que não aprendeu com 1964, porque naquele período ela fez o jogo mais sujo. Como pesquisadora do papel da imprensa durante no regime militar, tenho muita clareza de como as coisas se desenrolaram. A forma como achincalharam o presidente da República João Goulart, legítimo presidente, é uma coisa abusiva e absurda. Conseguiram o seu objetivo, no entanto eles descontentaram também e a imprensa passou a sofrer um dos seus maiores dramas na forma da censura à imprensa de forma brutal. Estudei o Estado de S. Paulo e foram 1.122 matérias censuradas e nos locais dessas matérias publicou-se duas vezes e meia “Os Lusíadas”, para nós termos uma ideia do que foi a censura. Parece que não se aprendeu com isso. E a imprensa está, mais uma vez, repetindo o seu mais triste papel.

Agora, você está falando com uma pessoa que acredita e é favorável em todas as circunstâncias à liberdade de imprensa e acha que ela deve ser mantida. Mas não basta defender a liberdade e achar que está tudo bem no melhor dos mundos. Não está. Existem papéis e formas de se desempenhar esses papéis, e ela [a imprensa] está desempenhando da pior maneira possível, por isso não faz a leitura. Não lhe interessa fazer a leitura, ou seja, ela está a serviço de determinados interesses que não são os interesses da maioria da população brasileira.

A senhora citou a importância da Constituição para o fortalecimento do Estado democrático de direito. A nossa Constituição tem força para resistir a todas essas investidas?

Acredito que sim. Além de forte, a Constituição brasileira é moderna, arejada e está adequada ao tempo. Pode-se ter uma Constituição que traga determinados elementos, mas muito afastada da realidade que está se vivenciado. Ou pode-se ter uma Constituição como a dos Estados Unidos, que é tão singela com apenas sete artigos que cabe tudo ali, sem que precise remodelar a cada tempo. Mas em ambas as situações as condições são boas.

Para enfrentar a crise de legitimidade e repactuar o país, setores defendem a realização de eleições diretas. A senhora acredita que do ponto de vista da história do Brasil essa seria a alternativa?

Não tenho dúvida. É o caminho para que a gente readquira a dignidade. Para recuperar um Estado e fazer com que ele se reaproxime do Estado democrático de direito esse é um caminho excelente, ideal. Não representaria nada que fosse alterar ou macular os nossos direitos nem manchar. Muito pelo contrário, representa uma saída possível. O que manchou e maculou foi a interrupção de um determinado processo que era legítimo. Ora, a presidenta assumiu e determinadas pessoas não estão contentes, fiquem na oposição. O que não se pode fazer e nós não podemos admitir é a interrupção do processo, pois aí se desconheceu, pelo menos, 54 milhões de votos.

Dilma não foi eleita de uma forma ilegítima ou por um processo como aconteceu no regime militar em que o general-presidente escolhia outro que tinha cinco estrelas, que era absolutamente absurdo. Não estamos vivemos uma realidade como essa. Vivemos uma realidade, a duras penas, de reconstituição da democracia, construção de um caminho democrático. O que houve [com o impeachment] foi uma interrupção do caminho democrático, tão custosa para nós.

A crise política reacendeu um discurso de combate à corrupção e da tese que o Brasil é o país da impunidade e da corrupção sistêmica. Esse discurso tem sido adotado por diversos setores, inclusive do Judiciário, para legitimar as suas ações. Nós, do ponto de vista da nossa história, somos um país de corruptos?

Não concordo com isso. Acho que isso é a pior coisa que pode acontecer. Eu sou uma historiadora que estuda bastante a história em si e a construção da história que é ensinada. Se observamos a história ensinada através de mostrar uma independência que não foi independência conduzida pelo povo. Como se o povo estivesse ausente. Mostrar uma abolição da escravatura que também não foi conduzida pelo povo. Proclamação da República que também não contou com a participação do povo. Então, mostramos uma história em que aparentemente o povo está ausente. E esquece que, na realidade, para que se chegasse à abolição, à independência, quantos movimentos populares aconteceram. Na verdade, o que se tem feito é contar uma história de que o povo brasileiro está ausente.

E isso vem combinado com a ideia de que nós somos um dos povos mais corruptos do mundo. Vai observar países como o Japão, Grã-Bretanha, a França da Revolução francesa. Todos eles com escândalos gravíssimos. A corrupção não foi inventada no Brasil nem tampouco é exclusiva do Brasil, muito menos um patrimônio. Ele é endêmica e existe em todo o mundo. Qual é o nosso papel? É, em cada um desses países, lutar para que a corrupção não exista. O que não se pode fazer é tentar enganar as pessoas.

Durante algum tempo havíamos recuperado a ideia de que o Brasil era um país que você gosta de viver, ao contrário daquela história que foi tão verdadeira para muitas gerações da “vergonha de ser brasileiro”. Estávamos recuperando uma dignidade. E este episódio que estamos vivendo, lamentável, desde a queda da presidenta Dilma é um episódio que vai na direção contrária, ou seja, “somos um país merreca”, “uma porcaria de gentinha que não sabe escolher”, então se não sabe escolher quem sabe outros escolham por ela? É o que está por trás desse discurso.