Como o Brasil pode responsabilizar agentes da ditadura

Se existiu uma Comissão da Verdade no Brasil, é porque Inês Etienne Romeu denunciou as torturas que aconteceram na Casa da Morte, em Petrópolis (RJ). É o que argumentava Maria Amélia de Almeida Teles, também vítima da ditadura, quando defendia a instalação de uma placa que homenageasse Inês no prédio do Arquivo Histórico de São Paulo.

Por Daniela Cambaiuva


Inês Etiene, presa política na ditadura militar no Brasil

Inês Etienne Romeu é a única sobrevivente da Casa da Morte, o maior centro de prisão clandestina e de tortura de ditadura de que se tem conhecimento no Brasil. Em 1971, passou 96 dias ali. Depois de libertada – foi a última presa da ditadura a ser libertada – e anistiada de uma condenação de prisão perpétua, em 1979, denunciou o cativeiro.

Condenada à prisão perpétua, Inês foi a última presa da ditadura a ser anistiada em 79

Deve-se a Inês todo o conhecimento que se tem sobre o que aconteceu na Casa da Morte.

Ela testemunhou inúmeras vezes, entre 1979 e 2014; à Comissão Nacional da Verdade, à Comissão Estadual da Verdade da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, ao Ministério Público Federal e à Ordem dos Advogados do Brasil.

O caso de Inês consta na publicação “Crimes da ditadura”, lançada neste sábado (24), no Memorial da Resistência, em São Paulo. O evento contou com a participação de representantes do MPF e de Maria Amélia Teles, Marcelo Rubens Paiva, Victória Grabois e Iara Xavier Pereira, todos vítimas e familiares de vítimas do regime.

“Crimes da ditadura”, já em sua 2ª edição, é um relatório, publicado como livro, produzido pelo Ministério Público Federal das atividades sobre investigações criminais feitas entre 2013 e 2016 sobre graves violações de direitos humanos cometidas por agentes do Estado brasileiro entre 1964 e 1984.

Apesar de a lei de anistia, de 1979, impedir a punição daqueles que praticaram crimes durante a ditadura, o MPF investiga alguns casos para descobrir mais informações sobre torturas e desaparecimentos, e apresentar ações na Justiça para responsabilizar quem cometeu as violações.”A fim de realizar o dever de contribuir para a justiça, a memória e a verdade sobre esse período histórico”, explica o MPF.

Até a data de conclusão do relatório, dezembro de 2016, o Ministério Público Federal havia proposto 27 ações penais contra 47 agentes envolvidos em 43 crimes cometidos contra 37 vítimas.

São listados 11 homicídios, 9 crimes por falsidade ideológica, 7 sequestros, 6 ocultações de cadáver, 2 quadrilhas armadas, 2 fraudes processuais, 1 estupro, 1 favorecimento pessoal, 1 transporte de explosivos, 1 lesão corporal e 2 abusos de autoridade.

A ação sobre o caso de Inês foi apresentado pelo MPF em dezembro de 2016 à 1ª Vara Federal de Petrópolis. A denúncia foi rejeitada em 8 de março de 2017. O MPF já recorreu ao Tribunal Regional Federal da 2ª Região e aguarda a resposta.

Casa da Morte: Centro clandestino de tortura e desaparecimento

“Na versão do tenente-coronel Paulo Malhães (conhecido torturador e agente do CIE, falecido em 2014), no jargão do regime militar, a Casa da Morte era denominada de centro de convivência e usada para pressionar os presos a mudarem de lado e passarem a ser informantes infiltrados”, segundo texto do MPF. Para Malhães, que atuou na Casa da Morte, o erro da ditadura foi ter deixado Inês ter saído viva de lá.

Como Inês foi a única sobrevivente da Casa da Morte de Petrópolis, seu testemunho possibilitou a identificação da rua, da casa, do proprietário e de alguns agentes, dos quais ela sabia o codinome.

O que consta no livro “Crimes da ditadura” sobre Inês é resultado de uma série de investigações feitas pelo MPF, usando provas orais e documentais. As imputações são estupro (artigo 213 do Código Penal) e sequestro qualificado (artigo 148).

A Casa da Morte de Petrópolis é considerada um centro de prisão clandestino porque não estava registrada oficialmente enquanto delegacia ou qualquer instituição vinculada ao Estado brasileiro, embora tivesse sido criada e mantida pelo CIE (Centro de Informações do Exército).

Segundo o relatório da CNV, o proprietário da casa era Mario Lodders, que havia empresado o imóvel, em 1971, para o ex-interventor de Petrópolis, Fernando Ayres da Motta, que cedeu o lugar para a repressão.

Localizada em uma rua pouco movimentada em Caxambu, um bairro residencial de classe média da cidade de serra fluminense, a casa não chamava atenção dos vizinhos. Naquele bairro, em algumas das casas, sequer há moradores permanentemente. São residências usadas em temporadas e fins de semana. A probabilidade de que alguém escutasse os gritos das vítimas era mínima.

Nem a Inês, nem a qualquer das pessoas que passou pela Casa da Morte era permitido o contato com familiares e amigos.

“Além das torturas reconhecidamente aplicadas como padrão aos presos políticos do regime militar – choques elétricos, pau de arara, cadeira do dragão – Inês ainda sofreu com a maldade de seus carcereiros, que a maltratavam apenas para seu divertimento. No inverno de Petrópolis, onde a temperatura podia chegar a menos de 10º C, era obrigada pelos carcereiros a deitar nua no cimento molhado”, descreve o MPF.

Tentou se matar quatro vezes, mas sempre foi mantida viva por médicos militares. Em uma delas, a punição pelo suicídio frustrado foi intensa. “Fui violentamente castigada: uma semana de choques elétricos, banhos gelados de madrugada, “telefone”, palmatória (…) A qualquer hora do dia ou da noite sofria agressões físicas e morais”, relatou.

Em agosto de 1971, em um intervalo de cinco dias, foi estuprada duas vezes por “Camarão”, codinome de Antonio Weiner Pinheiro Lima, o caseiro do lugar. “Era obrigada a limpar a cozinha completamente nua, ouvindo gracejos e obscenidades, os mais grosseiros”.

Em diversas investigações, o MPF tentou identificar quem eram os agentes da Casa da Morte. Foram muitas as buscas até descobrir a identidade do Camarão, considerado um nome fundamental para descobrir fatos novos sobre o lugar e, principalmente, quem foram as outras vítimas – é possível que mais de 20 pessoas desaparecidas possam ter sido assassinadas ali.

A primeira pista apareceu em uma agenda telefônica de Malhães: a anotação “Camarão”, acompanhada de um número de telefone fixo. Depois de uma série de buscas e cruzamentos de dados, chegou-se a Antonio Wainer Pinheiro Lima.

Com uma ficha de antecedentes criminais que incluíam tentativa de homicídio, furto, lesão corporal, porte de arma, na democracia, Antonio já não queria mais o apelido Camarão, devido ao risco de denunciar seu passado. Preferia “Neir”, diminutivo de Wainer.

Inês identificou e confirmou que era ele mesmo o Camarão. Intimado pelo MPF para depor, fugiu de sua casa em Araruama (RJ). Foi encontrado em Tauá, no interior do Ceará, e conduzido coercitivamente. Confessou ter sido o caseiro, mas negou ter praticado qualquer crime.

Ela conseguiu denunciar também o médico e ex-militar Amílcar Lobo, responsável por ela na casa. De codinome “doutor Carneiro”, ele teve o registro cassado pelo Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro.

Comissão Nacional da Verdade

Na CNV, Inês falou da perseguição que sofreu pelo Estado brasileiro desde 1964.

No dia do depoimento na CNV, uma de suas irmãs, Celina Romeu, declarou: “a sua história é de heroísmo, você não tem mais o que temer. Você venceu”.

Mineira de Pouso Alegre, Inês era formada em história e bancária em Belo Horizonte (MG).

Foi militante do Sindicato dos Bancários e do Movimento Estudantil. Depois do golpe, foi para a clandestinidade e para a luta armada.

Acabou presa em 5 de maio de 1971, levada para o DOPS e, de lá, para Petrópolis.

Da Casa da Morte saiu viva por aceitar a proposta de se tornar uma agente infiltrada da repressão em organizações de guerrilha urbana. Para garantir que não seriam traídos, os repressores forçaram Inês a assinar acusações contra uma de suas irmãs, que sequer exercia alguma militância política. Também foi obrigada a gravar um vídeo em que confessava ser agente do governo.

Quando saiu de lá, foi entregue na casa de uma de suas irmãs, em Belo Horizonte, pesando 32 quilos. A família a levou para um hospital, onde foi presa oficialmente pela ditadura e passou mais oito anos detida.

Em 2003, aos 61 anos, sofreu um atentado em casa. Foi encontrada caída e ensanguentada, com traumatismo cranioencefálico por golpes múltiplos diversos, depois de receber a visita de um marceneiro contratado para um serviço doméstico. Sobreviveu, mas precisou fazer uma série de tratamentos para recuperar a fala e as funções motoras.

Inês morreu dormindo, em sua casa, em Niterói, aos 72 anos, em 27 de abril de 2015.