Da era dos direitos à guerra de todos contra todos

Entre as grandes transformações regressivas das ultimas décadas no mundo está a passagem da hegemonia de um modelo de bem-estar social à de um modelo liberal de mercado. No primeiro o Estado assumia a garantia de direitos da população, na segunda o Estado se retira e deixa o mercado promover a guerra de todos contra todos.

Por Emir Sader

Michel Temer - Foto: Marcos Corrêa/PR/FotosPúblicas

No Brasil, foi a partir de 1930 que o Estado começou a assumir a responsabilidade sobre os direitos da massa da população, antes totalmente excluída da ação do Estado. A criação do Ministério do Trabalho e a criação das políticas que garantem a aposentadoria dos trabalhadores foi o símbolo maior de um governo que rompia com aquele, das oligarquias, para quem “a questão social é questão de policia”, nas palavras de Washington Luis.

Foi necessário que, a partir do ressurgimento do liberalismo, sob sua forma neoliberal que, conforme as palavras de Ronald Reagan, “o Estado deixou de ser solução, para ser problema”. A regressão da ação estatal, a promoção do Estado mínimo e da centralidade do mercado, afetam basicamente a quem tinha no Estado um mecanismo de defesa dos seus direitos.

O diagnóstico de fazer recair sobre os gastos do Estado a responsabilidade pela recessão econômica foi sempre seletiva. Os subsídios e outras vantagens que favorecem o capital foram sempre mantidos e incrementados, enquanto os recursos que protegem os trabalhadores pagaram o preço da retração do Estado.

Esse diagnóstico equivocado, que não levou, em nenhuma parte do mundo, a economia a voltar a crescer e a gerar empregos minimamente decentes, é o mote para incrementar a superexploração dos trabalhadores onde o modelo neoliberal volta a ser implementado. Na Argentina, 7 entre 10 jovens de até 17 anos, hoje são pobres – um dado escandaloso para um pais em que a classe média se retrai e se empobrece aceleradamente graças às brutais políticas favoráveis ao capital financeiro que predominam lá e aqui.

Quando o movimento sindical conseguiu diminuir gradativamente a extensa jornada de trabalho – que chegava a 14 e a 16 horas no inicio do capitalismo -, foi restando aos empresários melhorar a tecnologia, para intensificar a exploração da mão de obra, em jornadas menos longas. Diminuía a jornada e melhorava a produtividade.

No neoliberalismo voltaram, de forma escancarada, as formas de superexploração da força de trabalho. As medidas aprovadas ontem por 50 senadores eleitos pelos brasileiros promovem a extensão da jornada de trabalho, diminuindo o tempo de refeição, permitem as mulheres grávidas e que amamentam seus filhos a fazerem-no em condições insalubres, as contratações de mão-de-obra não terão a proteção do mínimo legal em termos de horas de trabalho da jornada e de remuneração.

Em suma, enquanto os capitais giram na especulação financeira, não produzindo bens, nem empregos. Enquanto a escandalosa especulação das grandes empresas e o uso de paraísos fiscais corre impunemente, o Congresso intensifica a exploração impiedosa dos trabalhadores para que essas atividades antissociais disponham de mais recursos.

Cinquenta senadores votaram os maiores retrocessos nos direitos dos trabalhadores desde que a CLT foi implementada, desde que o Estado passou a garantir direitos básicos da classe trabalhadora. As denúncias foram feitas nas suas caras pelos bravos senadores – e especialmente senadoras – da oposição, para que não ficasse nenhuma duvida em relação às monstruosidades que estavam votando. Nenhum deles é inocente e vão ter que pagar para o resto de suas carreiras publicas essa atitude.

Mais do que nunca fica claro que o movimento popular tem que se empenhar em mudar radicalmente a composição do Congresso. Esse Senado e essa Camara não caíram do céu. Foram dolorosamente eleitos pelo voto popular. Os movimentos populares – de sindicatos a movimentos culturais, de associações de bairro a movimentos de mulheres, de negros, de jovens – têm que definir cotas de parlamentares a serem depositários justos dos votos populares. E têm que fazer da campanha parlamentar um espaço de denuncia e de escracho de todos os parlamentares que votaram contra os interesses da massa da população brasileira.

Quando o capitalismo foi menos liberal e o Estado assumiu mais responsabilidades sociais, o capitalismo foi menos injusto, como no caso do Estado de bem-estar social na Europa. Quando o capitalismo voltou a ser plenamente liberal, se tornou mais escancaradamente injusto e se volta para o favorecimento mais aberto da minoria que detém os grandes capitais e contra a massa dos que trabalham e produzem, com suas mãos e seus cérebros, a riqueza das nossa sociedades. Quando o Estado se retrai, deixa operar os mecanismos selvagens do mercado, que joga todos contra todos, favorecendo abertamente o poder do capital, acumulado pela exploração dos trabalhadores. A guerra de todos contra todos é não apenas imoral, como injusta, porque pune justamente aos que trabalham, para favorecer os que vivem de renda e da superexploração do trabalho.