O futuro das esquerdas na França

Michal Löwy : ''O governo Macron funcionará como comitê de gestão dos interesses comuns das classes dominantes''

Por Leneide Duarte Plon

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Analisar o estado atual das esquerdas francesas e arriscar previsões sobre seu futuro é um vasto programa.

Para começar a ver mais claro no atual panorama político francês, profundamente perturbado pelo furacão Emmanuel Macron, conversamos com o sociólogo marxista Michael Löwy, diretor de pesquisas emérito do CNRS (Centre National de Recherche Scientifique) de Paris.

Entender o presente é o primeiro passo para vislumbrar o futuro.
 

Co-autor do Manifesto Ecossocialista Internacional (com Joel Kovel) Löwy participou desde o início do Forum Social Mundial. Suas obras sobre Marx, Lukács, Walter Benjamin e Franz Kafka fazem desse intelectual franco-brasileiro uma voz incontornável do debate político.
 
Concordando com a afirmação de Thomas Piketty de que ''Emmanuel Macron é um banqueiro que vai governar para os banqueiros'', Löwy prevê que ''o governo Macron funcionará como comitê de gestão dos interesses comuns das classes dominantes''.
 
E, segundo ele, elas têm aliados importantes :
 
''A grande imprensa francesa é porta-voz dos interesses do capital, totalmente favoráveis ao neoliberalismo. O programa anti-neoliberal consequente do Melenchon provocou o ódio e o medo dessa turma'', explica Löwy analisando a campanha anti-Mélenchon desencadeada antes do primeiro turno, quando o candidato da ''France Insoumise'' começava a crescer nas pesquisas.
 
Abaixo a íntegra da entrevista :
 
Carta Maior : Como vai se reorganizar a esquerda francesa sob a presidência de Emmanuel Macron ?
 
 Michael Löwy :  Por enquanto e imprévisivel…Vai depender da capacidade da principal força da esquerda, o movimento ''France Insoumise'', de Jean Luc Melenchon, de propor uma ampla frente das forças de esquerda opostas ao governo ultra-neoliberal do Presidente Macron.  No momento, não parece ser esta sua intenção, já que não quis formar um grupo comum com o PCF na Assembleia Nacional. A única força unitária atual é a Frente Social, reunindo sindicalistas, militantes de esquerda, etc. Nesta mobilização participa também a esquerda revolucionária, em particular o NPA (Nouveau Parti Anticapitaliste), que não teve muitos votos, mas conseguiu atrair muita simpatia para seu candidato, o operário Philippe Poutou.
 
Carta Maior : O panorama político francês está sofrendo grande reestruração depois da criação do partido de Emmanuel Macron ''La République en Marche''. O que significa um presidente francês se eleger dizendo-se ''nem de direita nem de esquerda'' num país marcado pela bipolaridade esquerda-direita?
 
Michael Löwy : O extremo centro de Macron aproveitou uma conjuntura onde o centro-esquerda (Partido socialista) estava completamente desprestigiado pela traição de Hollande e Cia, e o mesmo no caso da Direita, pelas falcatruas de Fillon, o candidato dos Republicanos. Mas o voto de Macron no segundo turno das eleições presidenciais foi essencialmente um voto para barrar a família Le Pen. Só uma minoria de seus eleitores dizia concordar com seu programa !
 
Carta Maior : O senhor pensa que ''Macron é um banqueiro que vai governar para os banqueiros'', como escreveu sobre ele o economista Thomas Piketty ?
 
Michael Löwy : Acho que é um bom resumo do que será a política de Macron. Pode-se dizer também que com algumas exceções (o ecologista Nicolas Hulot, muito ingênuo) se trata de um governo que funcionará como comitê de gestão dos interesses comuns das classes dominantes. 
Carta Maior : O que François Hollande fez (ou deixou de fazer) para que o Partido Socialista, que ele dirigiu por 11 anos, desmoronasse no fim do seu mandato ?
Michael Löwy : É' realmente um caso para ser estudado nas escolas de ciência política : como realizar, em poucos anos, um suicidio político, destruindo ao mesmo tempo seu próprio partido !   Hollande foi eleito com promessas de romper com as políticas neoliberais e combater o poder da finança. Fez exatamente o contrário, em particular com a famigerada "Lei Trabalho", que impôs por decreto, apesar da oposição dos sindicatos e de 60% da população francesa.
 
Carta Maior : A que se deve o score mais baixo jamais atingido por um candidato socialista na eleição presidencial, Benoît Hamon, praticamente o mesmo resultado do PS na eleição legislativa (pouco mais de 6%) ?
 
Michael Löwy : Só em 1969 o PS teve um resultado tão negativo.  A população não tem mais a mínima confiança no PS. O candidato, Benoit Hamon, até que era da ala esquerda do Partido, mas prisioneiro do aparelho, com o qual não quis romper.  Ele pagou o pato pelas infâmias de Hollande, com o qual havia rompido, mas demasiado tarde…
 
Carta Maior : O Partido Socialista pode ainda renascer das cinzas e reconciliar as duas esquerdas que ele abrigava ?
 
Michael Löwy : É' difícil prever… Mitterrand conseguiu ressuscitar o PS nos anos 1970, mas duvido que isto seja possível agora. Além disso, a divisão entre a direita do Partido, que simpatiza com Macron, e a ala esquerda, que se situa claramente na oposição, tende a se aprofundar.
 
Carta Maior : O que representa a formação de Jean-Luc Mélenchon, ''La France Insoumise'', uma evolução do Parti de Gauche que ele criou ao deixar o PS em 2008 ?
 
Michael Löwy : Se trata de um fenômeno inédito.  Não é bem um partido, com células, direções eleitas, etc mas uma lista de aderentes impressionante (uns 500 mil), constituída para apoiar Melenchon.  Neste sentido, é bastante diferente de ''Podemos'', da Espanha, com o qual se compara geralmente, mas que comporta debates,  correntes distintas, direções eleitas,  etc.   A política de FI é a de Melenchon : programa anti-liberal bastante radical, com uma dimensão ecológica importante, mas com uma tendência nacionalista de esquerda. Simbolicamente, substituiu a bandeira vermelha pela tricolor e a ''Internacional'' pela ''Marselhesa''…
 
Carta Maior : A alta adesão a Jean-Luc Mélenchon de jovens e de grande parte do eleitorado de esquerda decepcionado com o hollandismo vai garantir uma oposição consequente, aliada ao PC e eventualmente ao PS, na nova Assembléia Legislativa, dominada pelo partido de Macron e seus aliados ?
 
Michael Löwy :  Sem dúvidas, Melenchon e os deputados eleitos por FI vão se situar numa oposição consequente a Macron. O que é menos evidente é a constituição de uma oposição unida, incluindo FI, o PCF e, eventualmente, a ala esquerda do PS, mas esta não parece ser a intenção de Melenchon, pelo menos no momento. Tem havido apelos unitários neste sentido de alguns deputados anticapitalistas eleitos com o apoio de Melenchon e do PC, como Clémentine Autain, do pequeno partido Ensemble (Juntos) e o cineasta Francois Ruffin.
 
Carta Maior : Por que alguns órgãos da imprensa francesa resolveram no final da campanha para o primeiro turno apresentar Mélenchon como um perigoso bolivariano ? Por que ele faz tanto medo?
 
Michael Löwy : A grande imprensa francesa é porta-voz dos interesses do capital, totalmente favoráveis ao neoliberalismo. O programa anti-neoliberal consequente do Melenchon provocou o ódio e o medo dessa turma. Ainda mais que ele aparecia com chance de ir ao segundo turno (só faltou 2 por cento para que conseguisse).
 
Carta Maior : O Partido Comunista Francês foi o único PC do Ocidente que não mudou de nome depois da queda do muro. Isso explica seu declínio e sua pequena visibilidade numa França que vê Marine Le Pen chegar ao segundo turno da eleição presidencial ?
 
Michael Löwy : O problema não é o nome…O PCF se identificou de forma tão incondicional com a União Soviética stalinista que quando caiu o Muro de Berlim, começou também a declinar. Além disso, sua política nas últimas décadas tem sido de buscar sistematicamente a aliança com a social-democracia, participando de vários governos de centro-esquerda bem decepcionantes.  No período Hollande, situou-se na oposição, mas ao nível municipal e regional ainda buscava acordos com o PS. Mas, ao contrário do PC italiano, não renegou do comunismo, ainda reúne dezenas de milhares de militantes, influencia a principal central sindical (CGT) e conseguiu eleger dez deputados.
 
Carta Maior : No segundo turno da eleição legislativa de junho, o maior partido foi o  dos abstencionistas. Eles ultrapassaram 52% dos eleitores. A democracia pode ser exercida pela minoria que vai votar ?
 
Michael Löwy : Sem dúvidas temos na França, mas também em toda a Europa e nos Estados Unidos, uma democracia de baixa intensidade… Boa parte da população já não participa das eleições, descrente da possibilidade de mudar as coisas… Transformar esta situação é um dos grandes desafios da esquerda.
 
Carta Maior : De que o desamor pela política que o abstencionismo revela é um sintoma ?
 
Michael Löwy : Em parte é uma decepção legítima com a política institucional, dos deputados e ministros. Mas também reflete uma despolitização, uma indiferença,  um refúgio na vida privada. É' preciso lembrar aos abstencionistas : se você não se ocupa da política,  a política vai se ocupar de você… Mas existem outras formas de ação política além do voto : a greve,  a luta nas ruas, a ocupação das fábricas, o combate ecológico são formas de resistência em muitos casos mais eficazes.
 
Carta Maior : A esquerda de governo é a responsável pelo crescimento do Front National, por ter abandonado as classes populares ? 
 
Michael Löwy : Sem dúvida !  A política de Hollande suscitou raiva e desespero em amplas camadas populares, que, decepcionadas com a "esquerda", se voltaram para Marine Le Pen, com seu discurso pretensamente "anti-sistema". Mas não podemos subestimar o peso do racismo na França,  herança do período das guerras coloniais ..