Lima Barreto: o escritor que não se calava

Lima Barreto foi um escritor contemporâneo do seu tempo. Não no sentido de estar de acordo com este, pelo contrário: ele foi contemporâneo pois compreendeu a realidade em que vivia, denunciou os males da sociedade brasileira no começo do século 20.

Por Alessandra Monterastelli

Lima Barreto - Divulgação

Sociedade essa que havia abolido a escravidão há menos de três décadas, marcada pelo racismo, pelo patriarcado, pelas desigualdades e injustiças: Lima Barreto nunca fechou os olhos para nada disso, muito menos permaneceu em silêncio, pondo-se sempre de forma crítica.

Negro, de origem humilde, alcoólatra, carregou consigo amarras de uma sociedade cheia de preconceitos e empecilhos. Suas obras tornam-se indispensáveis para enxergar melhor o Brasil de hoje.

Em “Triste fim de Policarpo Quaresma” o autor analisa, por meio do personagem que, apesar de dramático, torna-se inevitavelmente cômico, diversos aspectos do Brasil. Desde a vida urbana até as marcas agrárias, critica diversos comportamentos burgueses e denuncia a realidade dos mais humildes e segregados. Faz também duras reflexões sobre o nacionalismo e a identidade brasileira, pondo em questão o governo da época.

Dono de uma vida difícil repleta de problemas pessoais, o autor aponta os defeitos sociais sem deixar de ver as diversas situações com um olhar melancólico, narrando as cenas com certo sentimentalismo, ainda que sutil.

Na crônica “Não as matem”, de 1915, Lima denuncia o feminicídio, também este um problema grave nos dias atuais, tornando-se um dos poucos escritores a falar sobre o assunto.

Deve ser interpretado como escritor que entendia o que acontecia, usando seu texto contra as injustiças. De fato, um autor que conseguia enxergar seu tempo.

Confira abaixo a crônica na integra:

Não as matem

Esse rapaz que, em Deodoro, quis matar a ex-noiva e suicidou-se em seguida, é um sintoma da revivescência de um sentimento que parecia ter morrido no coração dos homens: o domínio, quand même, sobre a mulher.

O caso não é único. Não há muito tempo, em dias de carnaval, um rapaz atirou sobre a ex-noiva, lá pelas bandas do Estácio, matando-se em seguida. A moça com a bala na espinha, veio morrer, dias após, entre sofrimentos atrozes.

Um outro, também, pelo carnaval, ali pelas bandas do ex-futuro Hotel Monumental, que substituiu com montões de pedras o vetusto Convento da Ajuda, alvejou a sua ex-noiva e matou-a.

Todos esses senhores parece que não sabem o que é a vontade dos outros.

Eles se julgam com o direito de impor o seu amor ou o seu desejo a quem não os quer. Não sei se se julgam muito diferentes dos ladrões à mão armada; mas o certo é que estes não nos arrebatam senão o dinheiro, enquanto esses tais noivos assassinos querem tudo que é de mais sagrado em outro ente, de pistola na mão.

O ladrão ainda nos deixa com vida, se lhe passamos o dinheiro; os tais passionais, porém, nem estabelecem a alternativa: a bolsa ou a vida. Eles, não; matam logo.

Nós já tínhamos os maridos que matavam as esposas adúlteras; agora temos os noivos que matam as ex-noivas.

De resto, semelhantes cidadãos são idiotas. É de supor que, quem quer casar, deseje que a sua futura mulher venha para o tálamo conjugal com a máxima liberdade, com a melhor boa-vontade, sem coação de espécie alguma, com ardor até, com ânsia e grandes desejos; como e então que se castigam as moças que confessam não sentir mais pelos namorados amor ou coisa equivalente?

Todas as considerações que se possam fazer, tendentes a convencer os homens de que eles não têm sobre as mulheres domínio outro que não aquele que venha da afeição, não devem ser desprezadas.

Esse obsoleto domínio à valentona, do homem sobre a mulher, é coisa tão horrorosa, que enche de indignação.

O esquecimento de que elas são, como todos nós, sujeitas, a influências várias que fazem flutuar as suas inclinações, as suas amizades, os seus gostos, os seus amores, é coisa tão estúpida, que, só entre selvagens deve ter existido.

Todos os experimentadores e observadores dos fatos morais têm mostrado a inanidade de generalizar a eternidade do amor.

Pode existir, existe, mas, excepcionalmente; e exigi-la nas leis ou a cano de revólver, é um absurdo tão grande como querer impedir que o sol varie a hora do seu nascimento.

Deixem as mulheres amar à vontade.

Não as matem, pelo amor de Deus!

(Vida urbana, 27-1-1915)