Alexandre da Maia: A caixa de Pandora segue escancarada

Quando vivemos a ruptura na dinâmica democrática que imaginávamos constitucionalmente assegurada, as consequências são ao mesmo tempo imprevisíveis e desastrosas. Aberta a Caixa de Pandora, os males do mundo perambulam sem controle e alcançam vários espaços da vida social.

Por Alexandre da Maia*

Caixa de Pandora

Aquilo que numa democracia estabelecida seria compreendido como uma aquisição evolutiva nas mudanças sociais passa a ser “relativizado”, como se os direitos sociais pudessem ser submetidos unicamente a critérios morais de análise. Vivemos no Brasil de hoje um momento em que muitas pessoas que se dizem “democratas” só gostam de enxergar aquilo que curiosamente é idêntico ou complementar aos seus valores morais e sociais, e querem fazer do mundo a sua imagem e semelhança – o que pode ser a semente que faz germinar ideias autoritárias num país que se diz uma democracia.

O reflexo dessa atitude autoritária aparece em múltiplos âmbitos da nossa vida. No sistema educacional, sua “mais perfeita tradução” é o movimento “escola sem partido”, que usa de subterfúgios vazios para transformar a educação num mecanismo de restrição a conteúdos que possam abrir a mente dos estudantes e permitir que ele se reinvente como sujeito. Apesar de aparentemente se mostrar “contra um ensino de doutrinamento”, a própria ideia de uma escola sem partido já é uma tomada de posição. Portanto, a “escola sem partido” é, ela mesma, uma tomada de partido. Claro que seus defensores não imaginam essa possibilidade, mas o desejo de cercear a liberdade da dinâmica educacional é muito maior. É o desejo de controlar o sistema educacional e fazer dele a imagem e semelhança – insisto – das ideologias e preferências dos membros desse “movimento”. Esse uso da educação para colocar viseiras de cavalo nas crianças é um dos instrumentos mais poderosos de assujeitamento e coisificação, e aqueles que estão por trás da “escola sem partido” sabem muito bem disso.

No campo da arte, vemos a pressão e a consolidação de atos de censura a exposições e obras, prática ditatorial que imaginávamos – santa ingenuidade! – superada pela ordem democrática instaurada em 5 de outubro de 1988. O fechamento da exposição “Queermuseu”, no Santander Cultural de Porto Alegre, representa com clareza essa tentativa de transformação do mundo nos limites estreitos do olhar do – pasmem! – movimento Brasil livre. O MBL não tem coerência com os supostos pressupostos “liberais”(sic) de seus membros e demonstra uma desonestidade intelectual de promover ideais conservadores a partir de rótulos que se apresentam mais palatáveis ao olhar dos incautos – como quando o movimento se autoproclama como “Brasil Livre”. Livre, desde que seja do jeito como a gente pensa. Nada tão antiliberal no plano político como essa postura. No mesmo passo, tivemos a inusitada situação referente à mostra Cadafalso, da artista mineira Alessandra Cunha, no Museu de Arte Contemporânea de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. A polícia foi ao museu e retirou da exposição o quadro intitulado “Pedofilia”, sob o argumento de que a obra fazia “apologia à violência sexual contra crianças”. Esqueceram um detalhe: toda a exposição é uma crítica à violência contra a mulher, isso sem falar nas múltiplas percepções de compreensão da arte. Pouco importa. A arte precisa ser observada a partir dos valores morais dos deputados do Mato Grosso do Sul, que foram à polícia prestar a queixa que deu ensejo à abordagem policial.

No campo político, nem se fala. Quando vemos Donald Trump ameaçar destruir por completo a Coréia do Norte, em pleno discurso na Assembleia Geral da ONU, fica cada vez mais difícil acreditar na humanidade. Quando Temer não usa dados oficiais em sua fala no mesmo evento, é mais um 7×1 na cara das brasileiras e dos brasileiros. Quando vemos Gilmar Mendes usar uma hora de seu voto sobre o envio da nova denúncia proposta pelo Ministério Público Federal contra Michel Temer et caterva para destilar impropérios contra Rodrigo Janot, “acusando-o”, dentre outras agressões, de ser um “bêbado”, isso só mostra a cara de pau de um Ministro que funciona como líder do governo no Judiciário, além de sua ignorância ao tratar um problema de saúde a partir de critérios moralizantes, com a única finalidade de agredir tanto a figura do ex-procurador-geral da República quanto ao papel institucional do Ministério Público Federal. O voto do ministro Gilmar Mendes diz mais sobre a sua sordidez enquanto ser humano do que sobre as controvérsias jurídicas que porventura estavam em debate no pleno do STF.

Ainda no aspecto das relações entre as instituições, vemos militares de alta patente lançando seu julgamento moral sobre as tensões políticas, sugerindo com clareza a possibilidade de “intervenção militar”. Como sabemos, um dos medos que havia nos anos 80 era o de um possível retorno do regime militar por dentro da nova Constituição. Por isso que o controle das Forças Armadas está nas mãos de um Chefe civil do Executivo. Esses militares querem justificar outro golpe como parte da democracia, e o mais curioso é ver como esses senhores ganham palanque – basta ver a entrevista concedida pelo general Villas Boas a Pedro Bial, exibida em rede nacional pela Globo. As autoridades civis constituídas calam. E com isso consentem. Com o auxílio luxuoso dos meios de comunicação em massa, voilà! Nossa democracia – ou o que ainda resta dela – nunca esteve tão na corda-bamba como agora.

A história não é um processo linear e progressivo. Estamos em um momento no qual as aquisições evolutivas de nossa democracia foram todas colocadas em xeque. Como Michel Temer e sua quadrilha estão a serviço do sistema econômico, quem paga a conta, como sempre, é o povo pobre e miserável que, dentre outros fatores, suporta uma carga de impostos muito maior em face da tributação do consumo, enquanto as grandes fortunas continuam a lucrar e obter mais dividendos graças à tragédia da democracia brasileira dos dias de hoje. Que o sistema eleitoral seja redesenhado a partir de 2019 para diminuir a cooptação pelo poder econômico – lícito ou ilícito – e que os sistemas de controle sejam levados a cabo menos por moralismos de ocasião e mais por planejamento a partir das bases oferecidas pela nossa ordem constitucional de 1988. Mas, para isso, precisamos de um chefe de Executivo com amplo apoio popular – algo que definitivamente não é o forte do atual mandatário do poder executivo federal.

*Alexandre da Maia é professor e coordenador do curso de graduação da Faculdade de Direito do Recife – UFPE e professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE.