Lu Castro: Augusto dos Anjos explica o futebol feminino
Decidi, recentemente, dispensar bem pouca ~ou quase nenhuma~ atenção ao futebol feminino por razões várias, entre elas, as mesmas enfadonhas briguinhas por poder.
Por Lu Castro*
Publicado 23/09/2017 13:02
De qualquer modo, eu sabia dos bastidores e sabia, inclusive, que Emily Lima, a primeira mulher a comandar a seleção brasileira feminina, encontrava entraves para trabalhar, sobretudo vindo do coordenador Marco Aurélio Cunha, que foi contra sua contratação.
A postura da coordenação ficou clara de início, ao não aceitar convite para participação na Algarve Cup este ano, com o argumento de que a competição estava “desprestigiada” ~ palavrinha de uso bastante recorrente de MAC, utilizada, inclusive, numa “matéria do prestigiadíssimo” site Futebol Interior.
Em um ano sem competições, a participação na Algarve Cup era fundamental para testes dentro de um novo conceito de trabalho implementado por Emily e sua comissão técnica.
Mas trabalho parece ser palavra non grata na CBF.
Voltando ao meu desinteresse e bode pelo universo da modalidade, estou fazendo meus corres na parceria com o Sesc e demais atividades mais prazerosas e menos onerosas ao meu pobre estômago, quando me chegam notícias de que há um movimento em certo grupo dentro do Twitter, pela demissão da Emily e retorno do Vadão.
Horas antes, chegou link de notícia do mesmo Futebol Interior de que Vadão era cotado para reassumir o selecionado feminino. Ainda ontem, recebo contato de jogadora da seleção contando toda a situação e que elas haviam conversado, ainda na Austrália, com o coordenador sobre o desejo de manutenção de Emily como treinadora.
Resolveram, como garantia, enviar uma carta a Marco Polo Del Nero assinada pela maioria das atletas, manifestando o mesmo desejo. A carta foi publicada no blog da “desprestigiada” Juliana Cabral, no portal ESPNw.
Confesso que esta madrugada foi tensa e agitada. Me permiti algumas cervejas desopiladoras do fígado cheio de raiva com a situação e acordei cedo demais para quem teria um dia cheio como hoje.
Ontem, ao falar com a atleta e mesmo já tendo me prometido ignorar as coisas do futebol feminino, fui obrigada a voltar e comprar a briga. É guerra!
Mandei mensagem para Emily ainda na madrugada, reforçando o apoio na hora difícil. Ela ia para a reunião e me retornaria assim que terminasse. Lamentavelmente, às 11h27 desta sexta-feira, a notícia era das piores: Demitida. E penso: Oh Lord, vamos lá fígado que é hoje que precisarei lhe usar de novo! Esse Brasil véio de guerra me obrigada a beber!
Como já conhecemos a caminhada e os meandros do futebol feminino, começamos a nos organizar para manifestar a insatisfação e a bizarrice da demissão, vista que Emily não durou 10 meses no cargo em um ano com ZERO competição e com justificativa tão bizarra quanto: resultados.
Aí começamos a avaliar o desempenho dos técnicos das seleções sub17 e sub20, apenas como comparativo e destaca-se que o desempenho dos dois, há mais tempos em seus cargos, é pífio.
Ora, se a justificativa para a demissão de uma treinadora são os resultados, o que mantém Luizão e Doriva em seus cargos? Incoerência ou rigidez seletiva?
Num ou noutro caso, há um aspecto bastante destacado neste episódio todo: misoginia. E falo com conhecimento de causa e como testemunha ocular de algumas falas bastante esclarecedoras do espírito que permeia o comando das coisas na CBF.
Assim que assumiu seu cargo na CBF, Marco Aurélio Cunha conheceu bem as pessoas que se dedicam à modalidade. Primeiro debateu sobre uma declaração infeliz sobre a aparência das jogadoras ainda no Canadá, por ocasião da Copa do Mundo de 2015. Foi questionado e sua explicação foi o entendimento equivocado da jornalista a quem concedeu entrevista.
Marco Aurélio Cunha tem trabalhado com a seleção feminina. Foto: Lucas Figueiredo/Mowa Press.
Em um dos encontros do Ciclo de Debates organizado por mim e por Juliana Cabral no Museu do Futebol, foi questionado sobre a responsabilidade da CBF em apurar casos de ausência de ambulância e médico em jogos do feminino, mais especificamente no Campeonato Mineiro, quando uma atleta convulsionou em campo aos 42 minutos do segundo tempo e foi socorrida por uma enfermeira que estava na arquibancada.
Também foi questionado a respeito da tenda disponibilizada para as atletas do América/MG em jogo preliminar contra o Botafogo válido pela série B em 2015. Na ocasião, às atletas da equipe feminina do América, foi destinada uma tenda, no estacionamento do Independência para que se trocassem. Até hoje não entendo o problema em utilizar os vestiários do estádio para isso.
Também cobramos para que se averiguasse as convocações da seleção, claramente tendenciosas em razão da presença do ex-auxiliar técnico da Ferroviária, Fabrício Maia, como coordenador técnico das seleções. Pessoa, que, inclusive, era quem dava os treinos para a seleção principal, quando não para a sub20 colocando o técnico Doriva para jogar entre as meninas.
Na primeira ocasião, numa das reuniões do grupo de trabalho de futebol feminino do Comitê de “passa pano” Reformas da CBF, ele comentou ~acredito que mais à vontade em seu ambiente e não diante de um auditório no Museu do Futebol~ sobre dois dos episódios que acabei de citar:
Exigir melhores condições para as meninas passou de dignidade para “coisa de feminista”.
Mas seguimos, como sempre, entre uma dor de estômago e outra, até que Emily foi anunciada.
Com gente suficiente para observar, cuidar e brigar pelo futebol das mulheres, me senti confortável e aliviada. Dividir a árdua tarefa de buscar uma modalidade mais justa, me deu espaço para outros desafios e ocupar outros espaços, ainda tratando de futebol, mas em seu todo.
Mas diante de mais um caso em que é preciso mostrar que o universo futebolístico é um retaliador de oportunidades para as mulheres, me fortaleci nas companheiras e companheiros que sabem da necessidade de construirmos um futebol para todos.
Enquanto meia dúzia de soberbos determinam os rumos do futebol brasileiro, Emily encontra respaldo em quem sabe de sua seriedade e vontade de fazer a modalidade funcionar.
Se trabalhar demais foi um dos problema para sua manutenção à frente da seleção, fica claro a que pretendem as matérias pagas no site a que já me referi.
No mais, me veio Augusto dos Anjos como o grande sintetizador deste momento bisonho que vivemos e que nos resta passar, assim como os soberbos senhores do futebol brasileiro, também passarão.
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
*Lu Castro é jornalista especializada em futebol feminino. É colaboradora do Portal Vermelho e é parceira do Sesc na produção de cultura esportiva.