Publicado 10/10/2017 18:51
Reconhecido como um dos maiores documentaristas da América Latina, o chileno Patricio Guzmán tem pela primeira vez uma mostra cinematográfica no Brasil exclusivamente dedicada à sua obra. Iniciada no último dia 5, no cine Caixa Belas Artes, em São Paulo, a mostra Paixão de Memória apresenta, até a próxima quarta-feira (18), 11 filmes dirigidos pelo cineasta, além de um documentário sobre ele, Filmar Obstinadamente(2014), de Boris Nicot.
Na programação estão desde a clássica trilogia A Batalha do Chile (1975, 1976 e 1979) até obras mais recentes, como Nostalgia da Luz (2010) e O Botão de Pérola (2015), além de outros filmes menos conhecidos, mas não menos importantes. É o caso de Em nome de Deus (1978) e A Cruz do Sul (1992), obras em que o documentarista se afasta da ditadura chilena – seu grande tema na carreira – e investiga as culturas latino-americanas pré-colombianas e a influência da religião.
Na noite de segunda-feira (9), Guzmán participou de um debate sobre cinema documental ao lado do professor Reinaldo Cardenuto, de História do Cinema na Fundação Armando Alvares Penteado, de Carolina Amaral de Aguiar, pós-doutora em cinema, e Ignacio Del Valle, professor de cinema latino-americano na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila).
A seguir, os principais depoimentos de Patricio Guzmán durante o debate:
Relação com a luta popular e o governo de Salvador Allende
"Meu primeiro filme, O Primeiro Ano (1972), era uma descrição do momento, um período de celebração, de alegria com a vitória de Allende. É um filme divertido, num momento em que não havia oposição e a direita não sabia o que fazer. Estávamos todos entusiasmados, então não havia autocrítica. Mas nunca fui militante de uma única força política e excluindo as outras. Sempre tive o governo Allende como um fenômeno de massa e não como de um partido ou outro. Na terceira parte de A Batalha do Chile(1979), o filme mostra como os grupos populares que apoiavam o governo queriam mais rapidez nas reformas. Apesar da minha posição pessoal, fui tolerante com todos os personagens, pois não queria tomar partido dentro das legendas de esquerda."
Morar fora do Chile ao mesmo tempo em que seus filmes tratam dos últimos 40 anos de memórias do país
"Não tenho uma definição exata do que faço. Também vivo fora não sei por quê, me acostumei a morar em outro lugar (atualmente Guzmán vive na França) e isso me ajuda. Gosto de não estar em nenhum lugar, me acostumei com essa sensação de não viver fixo em nenhum lado. Vou seguir fazendo filmes sobre o Chile até morrer, e não sei por quê. Tenho ideias claras sobre o Chile, mas não conheço o dia a dia. A pátria é o de menos, o importante é a justiça e os valores que se defende. Muitas vezes, quando estou no Chile, me sinto sozinho, chateado e preciso sair."
Método de filmar
"Sempre escrevo um guia antes de começar um filme. Invento paisagens que sei que existem, mas nunca vi; invento personagens que depois preciso encontrar. Coloco no guia sobre o que vai ser o filme, onde será, com quem vai ser. É uma intenção de como tratar o tema, mas quando começo a filmar, as coisas mudam. Mesmo assim, o guia é fundamental, não é preciso, mas é muito útil."
Diferentes modos de documentar
"No começo fazia o cinema direto, o cinema verdade. Depois em outros filmes há mais reflexão, a busca por personagens, uma história que se abre para algo maior. São dois estilos. A batalha do Chile é cinema verdade porque não tinha outro modo de fazer."
A união do poético e do político
"Quando era jovem não me interessava muito por política. Comecei a aprender mais quando fui morar na Espanha e passei a ler sobre a ditadura de Francisco Franco. No Chile fui aprendendo com amigos, porque não conhecia a cultura política do país. E isso depois foi útil para retratar a vida do país, também com humor, algo que fica muito melhor do que quando a pessoa atua como um militante, o que acaba tirando a criatividade com a câmera. Os chamados 'feitos invisíveis' ou 'quem fez o quê' é um conceito que ajuda muito. Quando se descobre isso, é algo extraordinário, é um motor documental estupendo se filmar o que não se vê."
A falta de coragem do cinema latino-americano em abordar temas das forças armadas, do sistema financeiro e da mídia
"São temas complicados e poucos tomam a iniciativa de enfrentá-los, sobretudo sobre o Exército e o capital financeiro. Não sei por que não se fala disso. Mesmo no Chile faltam filmes sobre as forças armadas. Acredito que é preciso seguir falando da ditadura e da violência, são nossos grandes temas continentais, tem que se continuar por toda a vida. Temos um só tema, que é falar de nossos problemas até o fundo, aconteça o que acontecer há que se continuar nesse caminho de combate, com todas as linguagens. Esse é um tema perpétuo."
A importância da memória
"Acredito que o presente se compõe de memória. Se olha para frente, mas também se olha para trás. É um tema magnífico para avançar. É no passado que está o futuro. O ângulo do olhar é melhor quando se olha para trás. O passado é toda a nossa vida e tem que se pensar nele porque ali está o futuro."
Como filmar a dor humana
"Simplesmente entrevistando frente a frente, até encontrar a essência. Não há problema teórico que impeça de caminhar e seguir adiante. Todas as perguntas são lícitas, até as mais terríveis, desde que se saiba perguntar. É preciso falar do tema para que se possa superá-lo."
A relação entre a história e o fantástico em Nostalgia da Luz, filme rodado no deserto do Atacama e que mostra a busca dos astrônomos ao lado de mulheres que procuram pelos restos mortais de parentes
"É uma procura para baixo e outra para cima, numa região linda e misteriosa. É estupendo filmar na região. O fantástico é a maneira como se chega ali, os telescópios enormes, templos da sabedoria humana e da curiosidade. Também é fantástico quando as mulheres contam que estão há 40 anos procurando seus parentes no solo e só acham pequenos ossos. Na região há muitos arqueólogos e eles ensinaram para essas mulheres técnicas para se vasculhar o solo. É um território incrivelmente interessante para conhecer o passado da terra e do mundo, um lugar que parece não ter nada e parece ter uma única cor. Tem uma pureza enorme nesse pedaço do Chile, um lugar magnífico."
A crise política do Brasil
Todo mundo conhece a crise brasileira. Não sei e creio que ninguém sabe o que vai acontecer. É uma crise grave porque o Brasil influencia todo o continente. No Chile há uma espécie de fadiga, os problemas continuam e ninguém tem a solução, um certo cansaço. Algo parecido pode acontecer no Brasil, uma fadiga da sociedade diante dos problemas do país.